Como nas igrejas, o típico adepto da autoajuda (o que paga, não o que forra o bolso de grana) tem como pressuposto necessário a falta absoluta de confiança na sua atividade cerebral. Bom, na verdade quem forra o bolso também não foge muito desse diagnóstico, mas como não pega bem chamar o cara que pode pagar suas contas de imbecil, os gurus de autoajuda usam em abundância o eufemismo baixa autoestima pra referir-se as suas vítimas ao seu público alvo. Então, pra pessoa tapada com baixa autoestima, faz-se necessário um ser iluminado pra lhe mostrar o caminho da luz. Pra uns (muitos) esse iluminado é jesus, o nazareno. Pra outros, além de jesus, o nazareno (pois o adepto da autoajuda é, logicamente, adepto de alguma religião - forma milenar de autoajuda), o ser iluminado pode ser também o Gabriel Chalita, o Shinyashiki, o Augusto Cury, o já meio fora de moda Lair Ribeiro (que usa o também eufemístico título neurolinguista pra não assinar charlatão nos livros), quem escreveu O Segredo ou O Monge e o Executivo e qualquer das centenas de charlatões do momento.
Pessoas com um ou outro neurônio (ativos) tendem a desprezar a literatura de autoajuda. Eu, com minha erudição beirando a zero (numa escala de zero a cem), talvez, exatamente por isso, não tenho nenhuma má vontade com as obras deste gênero. Tenho é muita vontade, de vomitar, a cada frase ou capa de livro duma dessas porcarias que vejo aí, nas livrarias e catálogos que recebo. Mas há um problema evidente nessa postura. Ignorar ou vomitar não anula a recepção em massa destas obras por aí. E não ajuda a entender também.
Foto: Revista Trip
Lá dentro dos muros do convento, um lugar também conhecido como universidade, sei que tem algumas teses e dissertações que dão conta, ou tentam, do fenômeno da autoajuda, mostrando que, além de enriquecer alguns charlatões, as obras servem de instrumento necessário ao controle da gerência capitalista. Grosso modo, o Fredric Jameson identificou no pós-modernismo e suas "desconstruções" das grandes narrativas, suas pós-ideologias, pós-industriais, sociedade do conhecimento...uma perfeita cobertura cultural ao momento econômico que ele chama capitalismo tardio - do Mandel, dos frankfurtianos. Quer dizer, na virada dos 60 pros 70, e seguindo pros 80, era econômica e politicamente, necessário ao capitalismo obstruir as políticas esquerdistas, ligadas ao período industrial e ao marxismo, como as lutas sindicais. Nada melhor que uma cultura "antenada" que pregue exatamente o fim dessas modernidades, o fim das classes, o pós-tudo isso. Claro que isso é só uma aspecto, e o Jameson mesmo mostra que as transformações indentificadas com o pós-moderno aconteceram - e foram aceitas amplamente - e não adianta ficar dizendo que não gosta, fazendo biquinho. Com a autoajuda é algo parecido. Não, não estou dizendo que o Dale Carnegie ou quem escreveu
O Segredo são idênticos ao que representam o Barthes ou o Lyotard, mas no ambiente completamente avesso à cultura mais profunda, a partir dos 90, era evidente que a lógica do neoliberalismo incentivaria uma visão cultural desprovida de qualquer espírito crítico ou postura coletiva, daí AUTO AJUDA.
Não é um complô capitalista, mas uma necessidade da economia sem freios do chamado neoliberalismo, que se casa com os interesses de uma pseudocultura encarregada de: 1) promover essa economia na lógica dos patrões, daí o discurso
empreendedor. 2) desqualificar os seus críticos, os "esquerdistas", "perdedores". A lógica é simples, quem faz isso ganha espaço e dinheiro, vai dar entrevista na GloboNews...Quem não faz, fica restrito aos círculos acadêmicos e outros espaços com visibilidade muito menor - até mesmo pelo conteúdo da crítica, pois poucas pessoas sacariam um livro do Jameson chamado
Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio pra ler enquanto espera o voo em Congonhas. Melhor pegar
O Monge e o Executivo. Daí uma pseudocultura hegemônica, onipresente nas estantes das livrarias, citada e recitada o tempo todo como exemplo de sabedoria. Não é por acaso que a chamada ciência do capital, a Administração, tenha se tornado praticamente sinônimo de autoajuda. A consequência do pós-modernismo não foi um aprofundamento dos Lyotard, Mcluhan, Barthes, Baudrillard, Derrida, Deleuze e outros pensadores igualmente interessantes. Foi a proliferação dos Chalitas e Shinyashikis.
Por que desconfiar: Enquanto quem tem um neurônio ativo torce o nariz, esse povo da autoajuda vai construindo uma cultura da adaptação que se encarrega de satisfazer qualquer vontade dos patrões. Não se trata apenas, como alguns consideram, um problema do tonto que compra essas coisas, onde o
guru lança lá a baboseira, dá suas palestras caríssimas e paga por isso
quem quer. Como cultura, mesmo pseudo, e cada vez mais hegemônica e menos sub, a
autoajuda molda, ideologicamente, uma visão de mundo. E esse mundo planificado é, via de regra, avesso ao
humanismo, ao aprofundamento do conhecimento, ao pensamento crítico...e por aí vai. Sei que pensamento crítico, conhecimento aprofundado e essas coisas soam abstratas, mas vai tentar dar um aula prum típico ser criado nessa cultura
pra ver a coisa materializada. Pede pra criatura ler um texto razoavelmente profundo de mais
de 3 páginas e vê o que acontece. Quem acha que essa é apenas uma subárea da cultura, restrita aos nichos, vai dar uma olhada no cinema de shopping aí perto. Vê o que tá passando, o que faz sucesso.
Consequências: se você for professor/aluno de uma escola pública, dessas clássicas, caindo aos pedaços, superlotada, sem mesas e cadeiras pra tanto aluno, banheiros inutilizáveis, alunos convivendo com o crime organizado...enfim, tudo na merda ou quase isto, ao invés de se revoltar, se unir aos moradores do local e pressionar políticos e governos pra mudar, você vai ter que lidar com coisas assim: o importante é o amor, só o amor e o afeto podem mudar as condições adversas..
..O amor é capaz de quebrar paradigmas, barreiras, ranços. É o amor que nos envolve, que nos move. O amor do professor pode salvar seus alunos...Assim pensa um dos "grandes pensadores da educação no Brasil", no caso o Gabriel Chalita, que além de grande pensador da educação é político com algum poder, deputado federal com grande número de votos, candidato derrotado a prefeito de São Paulo (mas com boa votação pra cacifar futuras ambições), ex secretario estadual da educação em São Paulo no PSDB de Alckmin e com prestígio agora junto ao PT pra influenciar na área - e autor prolífico, com mais de 30 livros publicados antes dos 40 anos, incluindo clássicos como
Educar em Oração ou
Seis Lições de Solidariedade com Lu Alckmin (sim, puxando o saco na cara dura da mulher de seu então chefe, governador do estado).
Este é apenas um exemplo de como esta cultura de puxa saco de patrão, que desvaloriza qualquer conteúdo sério, impregnou de tal forma nossas vidas que, mesmo quem jamais se aproximou de um livro desses vai ter que aguentar um de seus gurus influenciando diretamente em políticas da educação. Mesmo um alienado como eu, que tentou acompanhar a cobertura do UOL das olimpíadas de Londres, notou uma foto estranha na lista normal de colunistas do portal, como o Juca Kfoury. Numa daquelas típicas fotos de charlatões - sorrizão forçado (simulando descontração em excesso) e expressão de que quer te vender um carro usado que funciona que é uma beleza, o guru Roberto Shinyashiki aparecia diariamente com suas pitadas de sabedoria pra julgar o comportamento dos atletas brasileiros, quem tinha espírito vencedor ou não. Realmente, é preciso um elevado brilhantismo intelectual pra dizer, depois da derrota, que a saltadora com vara tem problemas pra alcançar o sucesso. Imagino, num raciocínio análogo, que os medalhistas de ouro tenham, como característica, a facilidade pra alcançar o sucesso. Tautologia tosca, mas que deve pagar bem - pro Shinyashiki. E eu, que já me achava meio tonto por ainda prestar atenção nesse tal de esporte, vejo que o principal portal de notícias do Brasil vai mais além, considerando quem acompanha esporte ali um imbecil por inteiro.
Um exemplo mais sério e bastante comum: quem trabalha numa grande empresa já deve ter passado por essa, uma situação foda, salários baixos, ameaça de demissão em massa, fechamento de unidades, mudança da tua unidade pruma cidade na puta que pariu e....aparece um guru de autajuda contratado a peso de ouro pela empresa (que dizia pro sindicato que tava quase falida) pra dar uma palestra motivacional e "ajudar a enfrentar os desafios, as mudanças de paradigma". Você, claro, é obrigado a ir. Senta lá, na hora marcada, e começa o show com o cara botando uma musiquinha de pássaros pra "tirar as nuvens que nublam o ambiente". Como é sempre possível piorar, logo o guru começa com aquelas dinâmicas retardadas todas, que fazem de tudo, menos tratar da merda da situação em que tá teu trabalho naquela maldita empresa.
A aceitação ampla destas baboseiras está muito longe de restringir-se ao espaço pessoal do cara que vai na livraria e compra esse lixo. É a afirmação de uma cultura incapaz de ser original, de pensar, refletir, olhar pra si e criticar o que vê. Detesto o hábito de comparar tudo que se julga errado com algo tirado do nazismo - uma prática habitual dos péssimos comentários da internet. Mas sempre que vejo uma figura dessas da autoajuda dando "lições" de sucesso aos mortais, lembro da Hannah Arendt acompanhando o julgamento do Adolf Eichmann. O antigo oficial da SS responsável pela logística dos campos de concentração nazistas, observou Arendt, era incapaz de um pensamento original. Quando, com muito custo, conseguia falar algo que saísse do lugar comum, Eichmann, contente com si mesmo, repetia isso até virar mais um dos seus habituais clichés.
Não estou dizendo que quem lê o Shinyashiki, o Chalita ou
O Segredo vai sair por aí querendo organizar um campo de concentração. Mas também não vejo esse adepto da
lavagem cerebral autoajuda como alguém capaz de se opor a isso - ou se opor às ditaduras, tortura, politicas de extermínio... Taí Gaza, um campo de concentração controlado pelo povo que sobreviveu aos campos de concentração, pra mostrar que hoje em dia podemos aceitar qualquer coisa, desde que tenha um cliché explicativo pra confortar a consciência e adormecer ainda mais nosso já atrofiado cérebro.
Assim, depois que alguém na Palestina dá uma estilingada num israelense, achamos perfeitamente normal o bombardeio de áreas civis pelos mais modernos e pesados armamentos de guerra israelenses - adquiridos juntos ao "líder do mundo livre", como se auto intitula o presidente dos EUA - como, por exemplo, caças de guerra F-16 e helicópteros Apache. Também não tem nada de mais se Israel jogar nas áreas civis, cheias de crianças, bombas de fósforo branco (proibidas pelas convenções da ONU) que queimam profundamente a pele de quem entra em contato com a fumaça criada pela substância . Não, nenhum guru da autoajuda vai falar disso, o mundo deles é, na aparência, outro. Mas é esse outro mundo que possibilita e incentiva o massacre de civis no mundo de verdade, o de Gaza.