domingo, 4 de novembro de 2012

Como funciona parte 2: Igreja

 "eu vejo o Serra"

Do mesmo jeito que zumbis, vampiros, fantasmas, lobisomens, sacis, malufs e outras tantas criaturas folclóricas, as religiões são fundadas em alguma forma de lendas e mitos formadores. Geralmente juntando um monte de histórias que vagavam por aí, escolhendo uma figura central e colocando tudo num único livro sagrado - fazendo os ajustes necessários pra dar um conjunto moralista que determina o que os mortais podem ou não fazer. Como os monstros, as igrejas tentam dar conta do desconhecido, geralmente apostando nos medos primitivos - fogo, inferno, danação eterna, literatura de autoajuda, sertanejo universitário, programa do Luciano Huck - pra tentar botar o povo na linha. Amor, respeito e caridade são conversa pra boi tatá dormir, basta uma olhadinha em qualquer religião importante pra revelar muito  pouco desse negócio de amor e respeito e muito do oposto.

Como qualquer debate primitivo, nas igrejas ou ajoelha e reza pelo meu livro, que é o único certo (feito por deus, não por Steve Jobs, ainda) ou a coisa vai ficar feia pro lado do herege. E olha que o mesmo livro sagrado pode servir a duas ou mais igrejas - ou partes do mesmo livro, ou trechos, ou um personagem.

Esse quiprocó todo, além da razão funcional de controle do comportamento social dos fiéis, serve também pra disfarçar o óbvio: não tem ninguém, nenhuma criatura, nenhum ser que tudo sabe, tudo vê e tudo pode lá em cima, lá embaixo ou dentro de uma garrafa.  Não tem nenhuma figura sobrenatural que faça as coisas por mim ou em quem eu possa botar a culpa pelas merdas todas que eu faço. Tô sozinho nessa e tenho que construir minhas próprias relações de amizade e respeito. E tenho de aprender a pensar por conta própria. Essa constatação da solidão e a decorrente necessidade de se virar - a responsabilidade, é o verdadeiro pavor do ser humano que corre pras igrejas todas. Lobisomens, fantasmas, vampiros, malufs e zumbis não são nadica perto da certeza de ter que se responsabilizar pelas próprias ações, pelas escolhas feitas, sem culpar alguma entidade, carregando um dos livros sagrados debaixo do braço como garantia de qualquer coisa.  

Até aí, cada um por si e se o cara se sente melhor achando que deus, papai noel, um ET ou outra lenda qualquer tá aí olhando por ele, protegendo sua família, dando vitórias pro seu time, cuidando do rendimento da sua poupança e ajudando a escolher um carro melhor pra comprar, problema dele. Quando o troço vira - como sempre vira - uma caça as bruxas, do tipo que persegue e pune quem não "respeita" o meu deus, o meu ET, não veste as coisas que o livro de mais de mil anos manda ou se recusa a levantar na hora da leitura dum trecho do sagrado livro de fantasia, a coisa muda. Já deixa de ser opção dum idiota que deixa uma lenda controlar sua vida e vira questão de política pública.

Tá meio viciado esse debate onde todo mundo pede respeito às diversas crenças enquanto as diversas crenças não respeitam nada - muito menos a inteligência. Por aqui temos basicamente católicos e evangélicos apitando, numa espécie de disputa pelo monopólio da estupidez. As duas igrejas têm razoável influência no congresso pra mudar ou impedir leis - e amplo espaço nos meios de comunicação (antes eram quase monopólio católico, agora são cada vez mais evangélicos, assim como a população como um todo) pra ficar dizendo e redizendo as lorotas todas que a CNBB, o padre Marcelo, o Edir Macedo e o Malafaia adoram.

Apoiada com gosto por políticos conservadores e de partidos supostamente de esquerda, a política de igreja tem tomado espaço dos debates que realmente importam - e aqui o exemplo clássico do uso de preservativos pra prevenir a Aids. Ao invés de focar em como combater e prevenir a doença, gasta-se tempo e recursos tratando da postura do Vaticano contra o uso de preservativos. E pessoas pegam e morrem da doença enquanto isso. Direito ao aborto? Neca, salta um versículo do livro de mitologias pra mostrar que não pode, que a mulher não tem direito. Nos EUA republicanos contra o aborto afirmaram no congresso que, no caso de mulheres estupradas, "deus quis assim". Ou, melhor ainda, um republicano falou que se o estupro for "legítimo", a mulher não engravida. Crianças que nascem sem cérebro, o que fazer? Vai lá ler no livro. Casamento gay, putz, olha só o que aconteceu em Sodoma e Gomorra. Se deus existe mesmo e curte coisas como republicanos, malafaias e igrejas de modo geral - e nos criou à sua imagem, essa imagem é a de um idiota perfeito. Como deus não existe, a criação do idiota perfeito é por nossa conta. E só nossa.

Só pra mostrar um pouquinho como uma igreja entende conceitos como justiça e respeito, na Inglaterra um ex-apresentador da BBC e um dos mitos da TV por lá, o Jimmy Savile, morto em 2011 aos 84 anos, foi denunciado por abusar de umas 300 meninas num período de mais ou menos 40 anos. E já não é apenas acusação, mas processo, com mais de uma centena de denúncias das vítimas do cara, incluindo parentes. E mais denúncias aparecendo todo dia. Acontece que a figura, como de habito, tinha um grande "trabalho pra caridade", décadas de "dedicação", zilhões doados, filantrópico, empreendedor social...a receita de sempre. E recebeu por isso todo tipo de bajulação da família real britânica, como o título de Sir, além das amizades com príncipes e ídolos pop e essas coisas todas. Lógico que o Vaticano também premiou o cidadão com um título, foi nomeado Cavaleiro Comandante de São Gregório o Grande pelo papa João Paulo 2º em 1990 por "seus trabalhos de caridade". Descoberta a história terrível destes abusos a coisa ferveu e querem saber por que a BBC demorou pra mostrar uma reportagem já pronta que apontava os crimes do Savile.  O chefão da BBC até ano passado, Mark Thompson, é o atual editor chefe do jornal The New York Times e parece que ele ajudou a abafar o caso. Agora a ombudsman do NYT tá no pescoço do Thompson, pedindo explicações do por quê da não exibição na BBC das denúncias. Enquanto isso no mundo fantástico do Vaticano,  a Igreja Católica da Inglaterra - também castigada por denúncias de casos de pedofilia - pediu pra revogar o título dado pelo papa. Normal, tentativa de dar uma aliviada nessa mancha grande dos católicos com pedofilia. Certo? Claro que o Vaticano negou, e pros católicos um cara que aterrorizou sexualmente centenas de pessoas continua merecendo a homenagem de São Gregório o Grande. Daqui uns 800 anos eles revisam isso. Então, pra resumir, uma igreja encobre por décadas (séculos) casos de abusos de seus padres pedófilos - não um ou dois casos, mas milhares. Dá um título em homenagem a um figurão que também é acusado de centenas de casos de pedofilia e nada faz pra reverter a homenagem. E essa igreja ainda acha muito normal sair por aí dizendo que está do lado do amor e da caridade. Vá contar isso pras crianças abusadas e suas famílias.

Noutra igreja - uma das evangélicas que não para de crescer - seu figurão mor aparece num vídeo, desses típicos de subgerentes de vendas do shoptime (compre, compre, compre), cobrando de seus coletores pastores mais empenho nas técnicas pra arrancar mais e mais dinheiro dos fiéis. Todo mundo fica puto? Não, os evangélicos dão mais grana pra mostrar sua fé, o cara fica muito mais rico e compra uma grande emissora de TV pra ensinar mais gente a roubar coletar mais grana pras causas de deus/jesus/mansões no exterior. E de quebra aumentar ainda mais a oferta de realitys e outros programas imbecis na televisão brasileira.

E é esse povo, os chefes das igrejas e seus zumbis seguidores, que quer se meter na vida de todo mundo, dizer o que é certo ou errado, o que pode ou não. Querem pautar uma eleição, tirando da conversa discussões "menores", como saúde, educação, transporte, estrutura, segurança, pra ficar nos kit gay, anti-aborto, anti-drogas, anti-pensar. Esse é o tamanho do debate público das igrejas - e é pequeno e tosco. Entregar decisões da vida pública prum padre ou pastor é meio como pedir pro Hannibal Lecter cuidar dum bebê enquanto dá uma saidinha e já volta.

 "pode deixar que eu cuido da criança.  Por acaso você tem um bom vinho e um azeite extra virgem em casa?"

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