quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Traíras, toupeiras e Smiley

No post sobre Bond versus Bauer falei da dificuldade dos roteiristas de 24 Horas em captar tudo que envolve uma das grandes certezas de qualquer boa história de espionagem: traição. Não só de espionagem, claro, mas é obrigatório lidar com traição nas histórias de agentes secretos. A necessidade autoimposta de manter um ritimo maluco de reviravoltas obrigou os roteiristas do seriado do Jack Bauer a tratar uma traição, por mais complexa que seja, na base das caretas dos atores, que passavam em poucos segundos do Mahatma Gandhi prum chefe da Gestapo. As motivações nunca importavam muito, tudo sempre meio óbvio, dinheiro, vingança pessoal....

Mencionei também que um dos produtores de 24 Horas, Alex Gansa, conseguiu aprofundar bastante a questão da traição em outro seriado, Homeland. Acabei de ver a primeira temporada deste e ao menos aqui tenta-se entrar nos motivos que levam alguém a mudar tudo na vida, uma conversão completa - e sem necessidade de caras e bocas dos atores pra mostrar o seu lado no momento (a dupla de atores principais Claire Danes e Damian Lewis acabou de ganhar o Emmy - tudo bem, prêmio americano não é muito parâmetro de qualidade, mas as vezes acertam). Gansa, imagino, deve ter bebido na fonte do escritor John Le Carré que mais do que "mestre da espionagem", num rótulo comum, seria melhor descrito como um ótimo criador de traíras.


Le Carré ou David Cornwell (seu nome real) quando jovem foi agente do MI6 e saiu ou foi saido - parece que vem uma biografia por aí - debaixo do escândalo da deserção de Kim Philby - um dos "quatro grandes", agentes do topo do serviço de inteligência britânico que atuavam como duplos (toupeiras, no jargão) pra KGB no começo dos anos 60. Os outros agentes eram Donald Mclean, Guy Burgess e Anthony Blunt. Esses quatro nomes aparecem com frequência - e boa dose de amargura - nos romances de espionagem - como os do Frederick Forsyth - e devem ter deixado um belo trauma (além de muita dúvida sobre tudo quanto é informação obtida) numa geração inteira de espiões ingleses. Entre os quatro toupeiras não havia nenhum pé-de-chinelo, vinham da elitista Cambridge dos anos 40 e 50, compondo a perfeição o imaginário que moldou a origem do serviço secreto britânico do aristocrata espião lutando pela rainha contra os inimigos do continente. E os quatro, contudo, optaram pela Rússia soviética. Mesmo que apenas num instante, o império decadente que havia resistido aos nazistas caia, aparentemente por escolha, pros soviéticos e isso deve ter marcado bastante o espião David Cornwell mas fundamentalmente o escritor John Le Carré, que basicamente moldou seus livros em função dessa duplicidade inerente a quem se propõe justamente a viver múltiplas vidas. Resumindo, enquanto, na década de 1960, o mundo começava a ver nos cinemas o superespião brintânico infalível e imperturbável no seu patriotismo de Ian Fleming, no mundo real MI6 e MI5 eram piada fora da Inglaterra pela intensa atividade de toupeiras soviéticas no seu quintal de caça a raposa.

Produto direto dessas traições, diferente de Flaming que exorcizava a complexidade com seu espião herói, Le Carré em todos os livros (pelo menos nos que me lembro agora) reconstrói um pouco essa rotina de sombra que deve ter cercado Kim Philby e os demais toupeiras - décadas passadas criando uma lenda, relacionamentos, filhos, amizades, informações, tudo ou quase tudo falso. Não apenas mentira, mas falsificações conscientemente plantadas pra levar seus colegas ao fracasso, incluindo aí a morte de agentes de campo e informantes. Ou seja, o cidadão tem que criar laços de camaradagem pra se ajustar no papel de membro eficiente da comunidade de informações enquanto se dedica, na sombra da sombra, digamos assim, a sabotar os companheiros. Decididamente não é assunto pra reviravoltas relâmpago com caras e bocas de atores fracos. Aqui, nos livros de Le Carré, o problema não é se traiu ou não,  ao estilo machadiano da Capitu, mas quando, como e por quê.

O primeiro grande sucesso de Le Carré foi O Espião que Saiu do Frio e sua criatura mais famosa, George Smiley, aparece brevemente como controlador do agente Alec Leamas, posto "no frio" pelo serviço secreto britânico - ou Circus - após uma operação fracassada na Alemanha Oriental. "No frio", no caso, é simular (não sem alguma verdade) uma punição e pé-na-bunda sem honra concedido pelos empregadores ingleses - e assim atrair uma oferta pra virar a casaca.  Fôlego, vamos lá: o novo trabalho do Leamas então é simular traição pra poder plantar mentiras contra um agente prestes a descobrir um simulado agente duplo agindo pros ingleses do outro lado da mítica cortina de ferro. Ufa. Traição é feijão com arroz neste tipo de história, mas John Le Carré consegue apimentar bastante a coisa e parece lembrar o tempo todo que se a missão daqui é colocar gente falsa lá, a de lá é colocar gente falsa aqui - é parte do jogo.

Se prum típico romance de espionagem o nosso lado é sempre moralmente o mais adequado, deixando aos traídores as caraterísticas degeneradas do assassino frio, do mentiroso (onde todos mentem), do sacana mesmo, pros personagens do Le Carré tudo fica meio embaralhado e é o outro lado que parece mais atraente, moralmente inclusive, como o Magnus Pym de O Espião Perfeito - e sem precisar ser nenhum sociopata. Não parece acaso que os toupeiras de Le Carré sejam sedutores aparentemente ajustados no trabalho e na família, enquanto seus controladores ou caçadores, como George Smiley, são o oposto disso. E é Smiley quem vai protagonizar os livros seguintes.


George Smiley é desprovido de charme pessoal, baixinho, meio gordo (mais pra atarracado) do tipo mais chato do que agradável socialmente. Mas tem grande talento pras coisas do serviço secreto, as rotinas, as análises de personalidade, conferência de dados obtidos em campo, as longas esperas, idiomas e suas nuances, enfim, as coisas tediosas que não são exatamente as que aparecem nos livros e filmes de espião. Smiley é aquele  baita cdf que trabalha horas e horas pra conhecer todos os detalhes duma operação, aquele filho duma puta que deixa todo mundo no trabalho - os "normais", que esperam anciosamente dar 18h pra se mandar - emputecidos por ter de ficar lá no serviço até altas horas levando pastas de arquivos pro tiozinho chato, enquanto na casa de Smiley uma desamparada esposa não se inibe em procurar companhias mais dispostas a ficar na cama do que no escritório - incluindo aí colegas de Smiley.

Por duas décadas, até o começo dos 80, os livros acompanharam esse mundo de Smiley e seu oposto na KGB, Karla. Na verdade não me lembro de ler KGB, MI6 ou CIA nos livros, Le Carré usava  apelidos e jargões pra essas coisas, como Circus, oposição e primos - deve ser coisa de agente mesmo, sei que assim a coisa fluia bem melhor na leitura pois tirava o peso das denominações ultra manjadas, como MI6 e KGB. Smiley não lutava contra a KGB ou contra os soviéticos, mas contra a "oposição" liderada pelo agente de codinome Karla. Assim, por jargões, Karla não era lembrado como inimigo do capitalismo, da liberdade ou outro cliché qualquer, mas era o oponente de Smiley nas tarefas de infiltrar espiões lá fora, localizar os infiltrados aqui dentro e lidar com as informações obtidas.

Não sei se quem só viu o filme do Tomas Alfredson (Tinker, Tailor, Soldier, Spy - 2011) conseguiu dar conta das histórias todas que moviam Smiley na caça ao topeira de Karla com tudo tendo que caber nas duas horas. Mais ainda na relação antiga de Smiley com seu colega - que se revelaria o toupeira - quase seu alter ego, simpático, sedutor e bem enturmado, incluido aí a mulher de Smiley na turma. Como pra efeito de suspense o traidor teria que ficar encoberto no meio dos demais (apesar da velha norma de colocar um ator famoso num papel aparentemente pequeno pra descobrir-se facilmente o vilão) não foi possível aos roteiristas do filme explorar a relação dos dois espiões - o apagado Smiley e o iluminado traíra, ambos veterenos do serviço secreto, entrando quase juntos, disputando os mesmos espaços, construíndo (ou não) as relações e acessos ao topo do Circus. Smiley sempre na sombra do colega. É quase como se Le Carré e seu Smiley sem carisma, eficiente e burocrático perseguisse Ian Flaming  e seu espião brilhante e sedutor e, ao final, Bond/Philby se revelando o traidor.

A caça e a descoberta do infliltrado soviético no Circus na verdade só começava a saga de Smiley como protagonista. Nos livros seguintes ele, hora na chefia hora encostado, teria que lidar com a investigação lenta e trabalhosa da revisão de tudo quanto é informação obtida, sem saber o que foi ou não manipulado pela toupeira, enquanto preparava seu contra-ataque a Karla. Tudo sempre na surdina, sem grandes cenas de ação daquelas que seduzem produtores de cinema - e talvez por isso, enquanto os outros livros de Le Carré já foram filmados, somente agora um cineasta que parece bastante talentoso como o Alfredson (Deixa ela entrar) se propôs a por na tela grande um dos livros do Smiley. Enfim, gosto dessa coisa do Le Carré de tratar sem nenhum glamour algo tão idealizado pelos filmes e livros.

O primeiro livro dele que li - pelo critério democrático de ser um dos mais novos e com capa original da biblioteca - foi A Casa da Rússia, escrito já no final dos 80. Um filme foi lançado logo depois com, veja só, Sean Connery no papel principal - e ele não é o espião, ao menos no começo. Mesmo longe de ser um dos melhores livros, já deu toda pinta desse clima ao mesmo tempo tenso e banal dos agentes secretos. E também do jeito do Le Carré escrever, classudo, fluente e irônico, longe, muito longe dos clichés do bom contra o mal ou dos espiões superheróis - e não falo aqui apenas do Bond (que, no cinema pelo menos, já ganhou um ar de deboche), mas cansei de pegar livro de autor famoso que começa com o agente secreto já mostrando ao mundo sua habilidade física extraordinária, sua mira infalível ou sua espantosa memória fotográfica capaz de registrar a cor dum selo duma carta jogada numa pilha de revistas numa sala depois de ficar 15 segundos na casa. Não, esse não é o mundo dos agentes de Le Carré.

Fui pegando os outros livros, mais velhos e com a capa dura padrão das bibliotecas, e nunca me arrependi de separar um tempo pra ler um livro dele, mesmo os mais fracos como o último que li, O Canto da Missão, de 2006. Acho que, junto com O Jardineiro Fiel, esses livros do Le Carrré onde o personagem principal é um tipico herói do Hitchcock - o homem comum que de repente se vê no meio dum complô de espiões - perde aquela mitologia da guerra entre iguais dum mundo meio paralelo e vira um pouco o ingênuo aprendendo como o mundo é malvado. Prefiro o universo das traições recíprocas de quem sabe onde pisa, das guerras clandestinas, sem muito espaço pro moço ingênuo. Talvez o que eu goste mesmo no tratamento dado aos traíras em Le Carré seja a sensação permanente de que talvez, quem sabe, eu, você, nosso lado, não seja o melhor. As certezas todas ditas e reditas dia após dia podem ser construções ideológicas - no sentido marxista do termo, ou seja, não são mentiras ou apenas mentiras, mas partes da verdade ditas conforme interesse de quem manda, dos donos. Seja uma classe ou um partido.

Sem Smiley e já quase sem guerra fria Le Carré aprofundou-se ainda mais na tentativa de entender os motivos pra alguém mudar de lado. Dois livros são especialmente importantes: O Espião Perfeito e Nosso Jogo. Mas o troço tá ficando meio grande e como não vejo um fim à vista vou dividir em partes.

PS - A propósito, ainda estou me recuperando da "atuação" da atriz que fez a presidenta dos EUA nas últimas temporadas de 24 Horas. Pra contrapor essa interpretação bonzinho-de-repente-malvadão dos outros personagens, mandaram a atriz mostrar toda dor de ter que carregar nas costas o peso da paz mundial, sempre obrigada a tomar as decisões impossíveis. O resultado é uma presidenta que passa o tempo todo com conjuntivite, olhos sempre vermelhos e cheios de lágrimas em qualquer diálogo. Se comesse o tempo todo ia ser presa pela Jack Bauer por uso de substâncias ilegais. O roteiro não se esforçava em entender as nuances da traição e os atores ajudavam menos ainda.

PS 2 - Só pra constar, sobre os Emmys ganhos por Homeland, o seriado acabou vencendo Breaking Bad, que é muito melhor, incluindo aí os atores todos.

PS 3 - Vi agora uns episódios da segunda temporada de Homeland, apesar de ainda tratar bem da coisa da traição, a Claire Danes resolveu que chorar o tempo todo e agir como maluca é a forma de mostrar a luta da personagem contra o transtorno bipolar. Pode até ser mesmo assim, mas torra o saco de quem assiste, já to pulando fora.

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