quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Bond versus Bauer


Uma das alegrias do ócio é poder me dedicar com empenho a certas atividades impossíveis em épocas de fechamento de texto. Munido de uma internet rápida (de uma pequena empresa local, muito mais rápida e barata do que qualquer velocidade fodona da Net) e a Netflix, pude rever em sequência - e em HD - os filmes do James Bond. Já tinha visto todos, mas fora de ordem e boa parte deles há muito tempo. Aproveitei também pra terminar de ver uma série da época que tinha TV a cabo e a FOX não dublava tudo, 24 horas. 

Comecei a ver as duas séries - cinematográfica e televisiva - meio por acaso, mas ainda nos meados de dois mil quando assisti pela primeira vez as correrias sem fim do Jack Bauer já tinha atinado pra esse status do Kiefer Sutherland virado num James Bond completamente obcecado, um psicopata desprovido de charme e qualquer vestígio de humor. Não por acaso o psicopata sem humor também é o próprio Bond a partir de Daniel Craig, numa reapropriação da cultura sisuda da ex-colônia em prejuízo do velho humor debochado do ex-império.

Revendo os filmes antigos deu pra lembrar como nada era levado a sério. Principalmente o período de Roger Moore como o espião do MI6. Em muitos momentos o super herói escapava das armadilhas cartunescas como num episódio do scooby doo - numa cena clássica Bond é deixado numa ilhota no meio dum rio de jacarés e foge correndo pisando sobre os bichos. É, exageravam no deboche, quase chanchada, meio como o seriado do Batman dos 60, mas, como no seriado em comparação aos filmes do homem morcego de hoje, é meio estranho quem leva tão à sério um cara vestido de morcego combatendo o crime ou um superespião que ganha todas as mulheres e nunca morre. Autodeboche é sempre uma virtude e Jack Bauer nem desconfia do que se trata. 

O único humor do agente de contraterrorismo americano está exatamente na absoluta ausência de humor. É humor involuntário, acho que só funciona pra quem assiste temporadas em sequência e pode acompanhar a fúria de Jack sempre pronta a arrancar "informações necessárias", custe o que custar. Terroristas, supostos terroristas, não terroristas, amigos, irmão, crianças, cães, gatos, elefantes, cedo ou tarde todos vão sentar numa cadeira diate de um furioso Jack Bauer pra confessar algo, qualquer coisa. Um fio desencapado, literalmente. 

Nestes momentos o pastiche sai das peripécias de Roger Moore pra encarnar na seriedade com que é tratado um psicopata como Bauer. Não deixa de ser curioso que, depois de participar das últimas temporadas do Rambo da era Bush Jr, um dos roteiristas de 24 horas, Alex Gansa, tenha conseguido realmente embaralhar as coisas entre certo e errado com alguma profundidade na série Homeland de 2011. Voltando pra série de Jack Bauer, a coisa funcionava assim: vamos construir um cenário ultraconservador com uma pitada aqui outra ali de dúvidas liberais pra mostrar nossa "complexidade" e legitimar a insanidade do Bauer. Falando assim parece até a Folha de SP. Então a unidade de contra terrorismo podia fazer qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, pra lidar com ameaças, mas tudo bem, os presidentes ao longo das diversas temporadas eram negros (dois) ou mulher, todos bem intencionados (exceto quando os vices assumiam, geralmente comprometendo a pureza dos votos). Toques democratas em ações republicanas. Nisso, aliás, foi profético com Obama. Claro que em 24 horas a ameaça é sempre real, portanto, Jack é obrigado a fazer tudo que faz, está sempre certo mesmo quando erra. Sabemos que fora da TV as ameaças nem sempre são reais, armas de destruição em massa não são armas de destruição em massa, mas os princípios - medo e pânico permanentes - funcionam pra fazer tudo que fazem e a existência duma prisão como Guantanamo resume bem isso.

Em comum, além do crachá de um serviço secreto, pouca coisa, mas Jack e Bond partilham do pavor ocidental do uso pela oposição de armas nucleares em seus respectivos territórios de proteção. Bond, no cinema ao menos, nasce sob a crise dos mísseis em Cuba. A chance de tudo acabar num botão é o verdadeiro inimigo, o que realmente movimenta o espião britânico. Bauer nasceu do 11 de setembro e a paranóia com o ataque dentro dos EUA por forças não convencionais e armas idem, principalmente nucleares. Não saber quem vai atacar é a virtude explorada pela série e o que movimenta cada temporada com as constantes voltas e reviravoltas - as vezes dentro dum mesmo capítulo o inimigo muda completamente e o ex-rival passa a ser um dedicado aliado enquanto aliados revelam-se traíras malvadões, numa demonstração clara da dificuldade de entender a complexidade dos motivos. Mas, como um noveleiro que nunca fui, acabo curioso pra saber o que se propõe para conclusão na sequência da reviravolta-de-todo-final-de-episódio. Perde-se complexidade, ganha-se na agilidade (meio desonesta, como suponho que seja no caso das telenovelas daqui). 

Agilidade, aliás, é a força da série, pro bem ou pro mal. O tal Tempo Real (é uma marca registrada mesmo, real time) que se propõe a contar o dia de Jack hora a hora como se estivesse acontecendo, sem avanços ou retrocessos, foi uma das novidades introduzidas pelo seriado, mas também uma limitação muito grande. No começo era legal ver horas e minutos passando corrido numa disputa frenética de Bauer contra algum deadline, mas, temporada após temporada, a coisa ficou meio ridícula. Como tudo tinha que caber num dia, num único dia, coisas que levariam meses acontecem em minutos. Numa das temporadas, acho que a penúltima, a filha da presidente resolve encomendar o assassinato de um prisioneiro que vai ser posto em regime de delação premiada e, portanto, receber nova identidade. O prisioneiro já está escondido e sob forte proteção, no entanto, poucos minutos depois do primeiro telefonema pra encomendar o serviço o atentado já é executado. Em qualquer telefonema, sempre de vida ou morte, de Jack pra pobre Chloe (sua suporte técnica na sede da agência) informações que levariam dias são exigidos em segundos. E atendidos. Mas enfim, são tantos exemplos dessa liberdade com o cronômetro que ou você releva ou não assiste nunca mais - isso me lembra quando fui assistir ao Godzilla do Emmerich e um cara na poltrona de trás ficava indignado o tempo todo (em voz alta) com os furos do roteiro. Uma hora não aguentei e virei pro cara: "meu, é um filme dum dinossauro correndo pra lá e pra cá em Nova Iorque, e daí se a arma tem capacidade de sei lá quantos tiros? Se um carro não conseguiria parar dessa forma? Relaxa cara, ou sai". É exatamente assim com o tempo em 24 horas.

Sobre Bond, espero que com outro ator retome logo a capacidade de rir de si mesmo, ou vai ficar datado. Com o Craig acho difícil, ele já deu a cara que queria pro espião (pra ser honesto, se eu tivesse pegando a Eva Green e tirassem ela de mim daquele jeito ficaria realmente muito puto). Um Bond  muito sisudo e agindo sempre com obstinação, sem pausa prum champagne com uma bondgirl meio pelada vai ficar preso a um espaço muito curto na linha de tempo da cultura da própria série, exatemente como o Bauer do seriado, produto típico de um evento. Que voltem logo as bondgirls e o autodeboche e que Bauer seja posto numa camisa de força e rápido, afinal Sutherland quer um filme pro cinema com o personagem.

PS - Sobre dublagem, muita gente boa apontou o elitismo dos inimigos de filmes e séries dubladas. Imagino mesmo as várias manifestações pedantes desse povo nos feices da vida, estilo classe média sofre, classe C tem que ir por inferno.... Mas eu mesmo não consigo ver filme ou série dublados. Primeiro porque acho importante o trabalho de voz do ator/atriz e a dublagem, por melhor que seja, perde totalmente isso. Como não vejo nada dublado desde os 90 não sei como anda, mas nos 80 e 90 eram 4 ou 5 dubladores revezando todos os atores principais. Quase todo mocinho falava como o He-Man ou o Bruce Willis. Os sotaques de qualquer personagem, dum escocês ao caipira estadunidense variavam do carioquês ao paulistanês e daí vem o segundo motivo deu não ver filmes dublados: gosto de acompanhar as coisas da cultura pelo que vejo no cinema ou séries. Realmente gosto de ver um filme que se passa na Alemanha com gente falando alemão, de ver um personagem iraquiano dum seriado com algum sotaque iraquiano, mesmo um sotaque canastrão. E se hoje consigo ler razoavelmente no idioma de Shakespeare não é por nenhum fisk, CCAA ou coisa assim, mas por te visto toneladas de filmes dos 14 aos 20 anos (graças ao video clube e aos VHS não originais). Enfim, se boa parte prefere os dublados beleza, mas poxa, mantenham opções pro som original, de madrugada que seja na TV, sessões alternativas nos cinemas. Esses dias fui  num cinema de Maringá e não tinha nenhuma sessão com som original, pra nenhum filme. Tudo dublado. Se bobear com a voz do He-Man ou Bruce Willis.

PS 2 - Falei que as reviravoltas de 24 horas eram meio desonestas, explico. Não mencionei a telenovela por acaso, lá sabe-se desde o primeiro capítulo que muita coisa vai acontecer pra, no final, o mocinho acabar na igreja com a mocinha. Na melhor tradição de mudar pra ficar na mesma de Lampedusa. As reviravoltas na trama de uma temporada de 24 horas são tão obrigatórias que ficam previsíveis. Pra piorar, essas mudanças radicais na motivação dos personagens não resistem a uma reprise. Quase todo mundo que viu Sexto Sentido foi ver de novo pra provar que o final era furado, mas não era. Revisto o filme, o roteiro dava todas as pista pro final e logo uma leva de filmes tentou reciclar a "surpresa no final" com resultados muito ruins, principalmente porque quando revistos os roteiros davam pistas enganosas (e não no bom sentido do suspense), trapaceando mesmo, só pra provocar um ohhh no final. As reações dos personagens de 24h, quando sozinhos (tipo após desligar um telefone) continuam falsas. Um personagem que está falsamente preocupado com outro quase chora após saber que aquele está em perigo ou pode ter morrido. Isso sozinho, sem ninguém pra precisar convencer. Anunciada a conversão óbvia do personagem, mesmo que só pro espectador, as atitudes do personagem mudam bastante também, de repente já não é preciso fingir pra câmera. O irritante excesso de compaixão de antes agora vira um irritante olhar frio do tipo sou um dos malvadões fodões e te enganei fingindo pra você, espectador.

PS 3 - A melhor coisa do seriado do Jack Bauer é a personagem Chloe O'Brian. Os ataques terroristas podem falhar mas a cara emburrada da Chloe nunca deixa na mão (põe no chinelo a atleta americana que não ficou muito feliz com a medalha em Londres), e a expressão amarrada vem acompanhada de uma absoluta falta de habilidade pra se relacionar com seus colegas de trabalho. Chloe é a verdadeira  marca da série.

Chloe explicando pro ex-atual-marido porque vai fuder com a vida de todo mundo e principalmente a dela pra salvar o Jack Bauer pela milésima décima quinta vez e em troca não receber nem um "valeu aí".


Mckayla Maroney mostrando que o importante é competir e tá muito feliz com a prata.

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