quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Zooropa e o final dos 80




O começo e o final, quando se trata de um evento conhecido, podem ser facilmente determinados com a ajuda de um calendário. A memória, entretanto, funciona por caminhos misteriosos e com frequência embaralha a linha do tempo, encurtando ou esticando as fronteiras (supostamente precisas) que determinam o início e o fim de uma época. Exemplo dessa apropriação do calendário pelo imaginário é a fúria de retrospectivas dos anos 80 vista nas várias formas de publicações, documentários, relançamentos, balanços, listas e shows, dando a impressão que a década durou bem mais que os seus 10 anos protocolares – se é que, parafraseando o Zuenir, terminou. Cores, músicas, bandas, seriados e filmes que, até bem pouco, eram apenas piada pela extravagância e gosto duvidoso renascem como cult’s, mesmo no pior dos mundos bregas.

Comecei a notar os primeiros sinais desse processo de beatificação dos 80 já nos 2 mil, morando numa república enquanto fazia mestrado. A gurizada (de 20 e poucos) escutava alto as tolices da época (essas, acho eu, sem defesa hoje ou em 2020-30 [espero]) como Skank e J Quest, quando outro trintão da república lembrou que 15 anos antes o som que rolava durante as conversas era de bandas como Legião, Titãs, Plebe Rude, Ira...

De fato, fácil cair no saudosismo, dizer que antes prestava e agora é tudo uma merda, mas resisto à tentação. Uma década onde só tinha Globo e SBT  - e sem internet - não é exatamente sedutora pros hiperplugados de hoje. Mesmo não tendo telefone esperto (vai que ele descobre que é mais esperto que o dono) nem participação digna de nota nos chamados sites de relacionamento, eu sou, confesso, dependente da web. Boa parte do que leio e assisto vem dali, ligar na rede é minha segunda ação diária e, pelo andar da coisa, dessa dependência só tendo a piorar. Contudo, porém, entretanto, aquela conversa na república sempre volta na cabeça quando sou obrigado a ficar 30 minutos diante da MTV ou ouvindo alguma rádio FM comercial.

O demônio do saudosismo paira literalmente no ar, talvez espalhado pelas mesmas ondas que emporcalham o som das rádios com as coisas que chamam de pop/rock hoje. A tentação materializou-se na forma ectoplásmica dum show muito bom de covers dos 80 (não era essa a proposta, diga-se em minha defesa, não fui pra isso, o cartaz do bar dizia cover do Led Zeppelin, dos 70, portanto, mas tudo bem) que assisti esses dias, só dava rock e na maior parte estrangeiro (minha preferência, não me desculpo). Curti muito, não nego. Pra não ficar preso na posição do "tiozinho chegando na meia idade querendo voltar no tempo e ser adolescente novamente" aviso já que não é o caso - ser adolescente nunca foi minha ambição, nem antes, quando criança, muito menos hoje perto dos 40 e se pudesse, aliás, dormiria com 15 e acordaria com 20 sem grandes perdas - tirando a Playboy da Luciana Vendramini.

Mas tratando desse suposto saudosismo com objetividade, se possível, não lembro exatamente quem postou na internet uma série de listas dos grandes sucessos distribuídos por década na música e cinema, só sei que e os top 10 das décadas de 50, 60, 70 (o critério é vendagem e bilheteria, não gosto) e a comparação com as décadas seguintes é, na falta de outro termo, constrangedora.

No cinema os 70, acompanhando a lista, talvez seja o último período onde grandes obras eram também os grandes sucessos e cito, por exemplo, Poderoso Chefão 1 e 2, Chinatown, Um Estranho no Ninho, Cowboy da Meia-Noite, Taxi Driver, Laranja Mecânica. Dois filmes desta época aparecem também nas relações de melhores e mais bem sucedidos: Tubarão e Guerra nas Estrelas, de Spielberg e George Lucas, respectivamente, abrindo caminho pros blockbusters que, se pareciam "brotar da terra" com naturalidade, principalmente pra Spielberg, acabaram por tornar-se o suplício de fórmulas, receitas, infantilização e continuações que desaguaram nos filmes de shoppings de hoje, expulsando adultos com mais de meio neurônio ativo.

Em retrospectiva - e na medida dos ajustes meio forçados que essas conjunturas exigem - os 80 são, de certa forma o ponto de inflexão de tempos anteriores onde sucesso e qualidade não eram mutuamente excludentes e o momento atual, onde qualidade ficou restrita a guetos de “gente chata” que não sabe se divertir. Basta citar um exemplo de diversão simples na época, Caçadores da Arca Perdida, ainda no início da década (1981), comparando com os Harry Potter, Crepúsculo, Jogos Vorazes que dominam com folga as bilheterias da última década.

Na música então a responsa dos 80 era grande. Pra quem gosta de rock os 60 e 70 são imbatíveis, mas, olhando pros 80, tinha muita coisa boa e minha turma do interior passava noites e noites alcoolizados num debate frenético quanto às virtudes e defeitos de Queen, Cure, Smiths, Guns, U2, REM, Red Hot...umas já nascidas nos 80, outras sobreviventes dos 70. Relembrando isso é só mainstream, tudo isso tocava o tempo todo nas rádios e todo mundo tinha aquela banda cult que não aparecia com tanta frequência (a minha era Talking Heads, de outros Jethro Tull). Pra aumentar a responsa os mitos Led Zeppelin e Pink Floyd praticamente terminavam com o início dos 80 – Led terminando de fato com a morte de Bonham e Floyd continuando sem Waters, já meio que banda cover.

Um ponto importante pra quem tem menos de 30 e desdenha da idolatria de algumas bandas das antigas. Acho que não é nenhum sociologismo apontar uma relação diferente com a música e com as bandas pra quem tá acostumado a baixar o que quiser da internet e sair escutando num micro aparelho por aí. Putz, até bem pouco tempo era foda conseguir determinados discos. Fazer listas pra ouvir no K7 então, paciência oriental pra ficar editando e copiando a bendita fita em dois aparelhos de som e seus intermináveis cabos de áudio conectando porcamente tudo - PAUSE REC num, PLAY noutro, e já, sem errar ou tudo de novo. Pra escutar o K7 em movimento só nos tijolos da Sony que serviam mais pra gastar pilhar e torrar a paciência com as constantes travadas do que outra coisa.  Vai tentar escolher uma música num troço desse então, avança, rebobina, de novo, de novo, até chegar ao começo da música. Esquece. A admiração diante de um disco raro conseguido, uma capa bonita, o cuidado com o bicho, a limpeza, a troca da agulha do toca-disco, acho que isso tudo, meio que ritualístico, aproximava um pouco a gente de determinadas bandas ou de um disco em especial. Hoje tem tanta música de tantas bandas no meu computador e mp3 player que só sei sobre o disco a que pertence quando é anterior aos 90. Capa então, sei de poucas. Lado A, lado B, isso tudo importava e acaba por conectar a um disco.

Enfim, outra vida. Um tempo - e aqui entro na particularidade, a minha - que começou a ficar pra trás não exatamente 1990, na virada formal do calendário, mas em 1991. Eu entrava na universidade e isso mudava muita coisa. Na música acontecia uma espécie de tour de fource das grandes bandas, o tal mítico 91 de que falam os críticos como o Barcinsky, com alguns dos melhores discos das melhores bandas: Out of Time (REM), Achtung Baby (U2), Nevermind (Nirvana), o Black Album (Metallica), Ten (Pearl Jam), Blood Sugar Sex Magic (Red Hot Chili Pepper), Use our Ilusion I e II (Guns and Roses) e outros, parecia um adeus coletivo a cafonice dos 80 , mas é do álbum que começa com um alerta alemão que vou tratar por hora.

Escutava U2 da mesma forma que outras bandas, com alguma preferência por REM e The Cure, então veio do Japão um CD, coisa nova ainda pra gente, que a irmã de um amigo mandou, o disco novo do U2, que após Joshua Tree e Rattle and Hum encerrava os 80 como a banda fodona (em vendagem e talvez prestígio) junto com Guns. Pra mim era legal, mas tava no meio das outras, até eu botar os fones do discman emprestado pra ouvir o Achtung Baby. Geralmente não gosto de um disco de cara, escuto e escuto pra, tempos depois, saber o tanto que me agrada, esse foi caso raro de escutar e sentir que o bicho pega. Quando chegou no meio do CD, The Fly pra ser específico, guitarras e vocal distorcido, putz, era de fato outra época que se anunciava, quase um tiro no peito dos MacGyver, Magnum, Incrível Hulk, Casal 20 e outras baboseiras meio obrigatórias que passava toda hora na única televisão da família dos 80. Comprei logo o LP com sua capa bonita (que desaparece, como de hábito, no CD). Acho que foi meu último disco, depois só CD.



Mas os ecos do laquê dos 80 ainda resistiam nesse processo normal de transição quando um ano e pouco depois veio o disco irmão de Achtung Baby, Zooropa. Já tinha aparelho de CD e aluguei (veja só) o bendito numa locadora pra copiar em K7 - e meu aparelho fazia tudo isso só apertando o REC, fantástico, parecia o tal Fim da História do Fukuyama. Não foi o impacto do disco anterior, confesso, mas aconteceu desta vez o que geralmente acontece quando eu gosto de verdade de um disco, aos poucos a canção título e que abre o CD  foi deixando sequelas com sua introdução interminável, seu clima meio tecno e vocal cheio de melancolia. Já era 93 pra 94 e o U2 nunca mais fez nada que se aproximasse da dupla Achtung Zooropa, mas com o CD e a nova facilidade de copiar, as músicas circulavam mais rápido e o Black Francis dos Pixies já berrava em alguns aparelhos de som enquanto um ou outro amigo falava de um tal Radiohead. Fecha-se, pra mim, definitivamente o caixão dos 80. Vamos adiante, ainda quero ver muita coisa nova e acho que da porcaria absoluta de agora vai brotar coisa boa - dialética talvez. Let’s go to the overground canta Bono no final do refrão de Zooropa, vamos pra superfície (e deixar o mofo dos 80 lá no fundo).

Epílogo: pra contextualizar um pouco, música eletrônica nos 80, lá no interiorzão, não era exatamente Kraftwerk ou Joy Division/New Order, mas um bate estaca do capeta tão incomodo quanto sem graça. Achtung Baby e Zooropa trouxeram um pouco de som tecno e acrescentaram muito ao U2 e sem esses dois discos a banda teria parado (de fato) nos 80. No álbum seguinte a promessa era um disco mais tecno ainda. Veio o tal Pop e o plano do produtor Brian Eno pra dominar o mundo não foi bem sucedido, o disco foi mal recebido. A reação da banda foi não arriscar mais tanto assim, ao contrário, se retrair, conservar, repetir fórmulas em discos regulares com um ou outro bom momento. Mesmo com os integrantes ainda na casa dos 30 e poucos de idade. Enquanto isso seu frontman ocupava todo espaço com seu jeitão naif e egocêntrico de propor soluções pros problemas do planeta. O U2 que, pra mim, sinalizou o fim dos 80 voltou pra lá – pros We are the world da vida, em campanhas que tratam os problemas (fome, miséria, falta de verba para tratamento da Aids) causados pela ganância capitalista sem nunca mencionar justamente a ganancia capitalista, mas apelando pra caridade e solidariedade – do tipo que pede pra comprar um ipod mais caro, CD mais caro, ingresso mais caro, tudo pra mandar uma parte da renda pra África, enquanto o mesmo processo que produz e lucra com o CD e o ipod vão continuar explorando e empobrecendo o continente. 

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