quarta-feira, 19 de setembro de 2012

F1 e nosso conceito particular de mérito


Sábado de treino de F1, Alonso e Maldonado disputando posições nas primeiras filas, Massa e Bruno Senna - seus respectivos companheiros de equipe - pra lá de décimo alguma coisa, constrangedor. De fato, depois da morte do outro Senna, continuei assistindo quase todas as corridas. Acho que gosto da coisa mesmo e não me importo tanto com brasileiro disputando vitórias - exceto por um fator importante: a monótona torcida pacheco do titular da transmissão da Globo.

Creio que não é nenhum exagero botar o Galvão como porta voz (um dos muitos) do pensamento elitista nacional, seja pela superexposição no principal canal de TV como narrador dos grandes eventos do esporte, seja por encarnar no temperamento e postura o típico tiozinho direitoso.  O Galvão é uma espécie de pedágio pago por quem não tem tv a cabo e quer ver futebol e F1. Não sei se ele nasceu rico ou ficou com a profissão, mas basta um fim de semana de corrida no "principado" (ênfase aqui) de Mônaco pra ter acesso às demonstrações de deslumbramento diante do mundo dos endinheirados, provincianismo típico, carregado de semicultura, que transborda bajulação pros famosos e poderosos. Movido pela própria personalidade e, claro, pela necessidade de sua emissora em dispor de pilotos brasileiros em grandes equipes (ia dizer ganhando, mas...), a voz oficial da nossa F1 é incansável em louvar as virtudes dos nossos rapazes e, em contrapartida, implacável em apontar as trapaças e armações que impedem nossos heróis de conquistarem as merecidíssimas glórias - e, de quebra, a Globo aumentar sua audiência nas "manhãs de domingo", claro.

Por acaso na mesma noite do treino pude ver o tal documentário inglês sobre o Ayrton Senna. Sem entrar no mérito do filme e da figura (que, segundo o amigo que assistia comigo tem um parafuso a menos, no que concordo, afinal se era um piloto espetacular o sujeito tinha como grande amigo o Galvão, além de ter namorado Xuxa e Galisteu, deve ser uma espécie de Sherlock cujo cérebro funciona muito bem somente pra uma coisa, duas não), pelo menos deu pra lembrar de um tempo, com Piquet também, em que não era preciso destroçar a realidade para elogiar os brasileiros.  Desta época sobraram eu e alguns outros assistindo, Schumacher (que vinha logo depois do Senna em Ímola, antes do acidente) e a dupla Galvão e Reginaldo Leme. O problema pro Galvão estava posto: como manter o mesmo tom ufanista com os pilotos que vieram depois?

Imperturbável pela lógica, a escolha do locutor foi, digamos, esticar a realidade para que pilotos apenas razoáveis, como Barrichello e Massa, surgissem como extraordinários, enfrentando todos os obstáculos (só eles, os demais tem sorte sempre). O recurso já aparecia antes, principalmente com Senna e seus arquirrivais malvadões Prost e Piquet (sim, um brasileiro podia ser malvado também, desde que outro brasileiro pudesse ser o mocinho), mas com as vitórias acontecendo e os títulos, ficava mais tranquilo de emplacar esse maniqueísmo, contudo, quando as vitórias secaram ou sumiram de vez,  a continuidade do "nós contra o mundo" ficou apenas patético. Lembro de uma corrida em que Galvão elegia diferentes condições climáticas supostamente favoráveis pro Barrichello (na quarta ou quinta posição) ganhar - e isso a cada 10 minutos: agora tem que chover, agora tem que secar, depois molhar de novo, agora um terremoto, um raio, e o alemão sortudo ia lá e ganhava. 

Mas dei essa volta toda porque, não por coincidência, a emissora do Galvão ataca quase diariamente as políticas de inclusão do governo federal, como as cotas para negros e a bolsa família. O argumento, via de regra, é o mérito. Os cotistas ou quem recebe uma bolsa auxílio, são, nessa retórica, no fundo preguiçosos e nós, ricos (ou quase, ou pelo menos fãs dos ricos) somos incansáveis, mais inteligentes, talentosos, ousados e desta forma chegamos aqui, no topo, não é justo alguém chegar também, mesmo que não exatamente no topo (vide o valor do bolsa família) sem nenhum esforço. Falta-lhes o mérito que nos sobra.

A ficção desta conversa fiada é, claro, considerar que o filho do Eike Batista e um rapaz nascido na favela do Macaco Queimado partem pra vida exatamente do mesmo ponto. Logo, seguindo o raciocínio, as Ferraris do deus do trovão são recompensas do talento e esforço individual do rapaz, enquanto as porradas da Rota e o busão lotado são resultados da falta de competência (preguiça) do outro. Incrivelmente todo mundo parece concordar com isso, do filho do Eike Batista (compreensivelmente) ao rapaz  nascido na favela (ideologicamente).

E a F1 com isso? É parte inerente do pensamento conservador dedicar todo rigor da nossa meritocracia fajuta no julgamento dos pobres, enquanto entre os amigos, os colegas, a família, membros do mesmo clube, a exigência do mérito é, digamos, bastante suavizada. Resumindo, se uma família do sertão miserável, sem nenhuma perspectiva, recebe duzentos contos do governo, ahh, aproveitadores, trata-se, evidente, de uma pouca vergonha, afinal, repete o bordão autoexplicativo “eu pago meus impostos”. Porém, se um playboy de família tradicional, frequentador assíduo do café society, resolve organizar um torneiro internacional de hipismo pra sua namorada (uma menina, aliás, que tem o sobrenome Onassis e, portanto, uma das grandes fortunas do mundo), batiza o torneio com o nome da moça e consegue captar (agora, na elite, mamar nas tetas não fica bem, então as palavras dão um tom "executivo" pra legitimar a manobra, como captar) muita grana do poder público pelas diversas brechas, incluindo aí o patrocínio e incentivos...., ahhh, aí sim, tudo certo, é pra isso que serve o tal do "eu pago meus impostos".

O playboy em questão é atleta olímpico, não ganha nada mas tá sempre lá, uma olimpíada após outra. Curioso que justamente no mundo dos esportes de elite, onde a tal competição (que no discurso estendido à sociedade justifica toda forma de opressão aos pobres) deveria separar os vencedores dos perdedores, por aqui é povoada de compadrio, de arranjos, de currículos artificialmente inflados e, exatamente no lugar onde a tal competitividade é exigência suprema, como a F1, ninguém vê problema em manter pilotos brasileiros café-com-leite, que, sabe-se, não vão incomodar ninguém na briga por vitórias e títulos. A voz oficial da F1 torce descaradamente para a renovação de contrato que mantenha um brasileiro em equipe de ponta quando todo mundo sabe, incluindo o piloto, que isso significa a obrigação de ser escudeiro, de não atrapalhar o primeiro piloto. Ah, mas todo mundo ali é excepcional, o cara é boa praça, é o Rubinho, o Massinha, tem a família deles sempre mostradas na corrida, pai, irmão, o nome da esposa do piloto dito com a intimidade de quem é da casa, mas não era pra vencer esse troço? Não era vencer que importava pro Senna (o tio), Piquet e Fittipaldi? Cadê o tal mérito? Pra quem é "bem amigos da rede globo" a medida é diferente.

PS - De 1994 pra cá os brasileiros têm se tornado notórios não por vitórias ou ultrapassagens arrojadas, mas por inovar nas diversas formas de entregar posições aos companheiros de equipe, de Rubinho, Massinha a Nelsinho Piquezinho (o filho). O último, diga-se, foi fundo na nossa nova arte de pilotagem e se esfacelou num muro pra dar a vitória pro Alonsão (não tem nenhum campeão de verdade que é inho, queridinho, bobinho, amiguinho).

PS 2 - Vejo na Folha que Alonso faz campanha para que Massa permaneça seu companheiro de Ferrari em 2013. Meio que resume tudo. 

PS 3 - Acabei de ver o treino pro GP de Cingapura, Galvão se emocionou com o tamanho do hotel por onde parte da pista passa, se encantou com o tamanho da piscina do hotel ("a maior do mundo"), com o gasto pra manter o sistema de iluminação (a corrida é noturna) e, veja só, com a quantidade em metros de cabos usados pra iluminação. Massinha e Senninha ficaram muito, muito atrás do Alonsão e Maldonadão.



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