domingo, 13 de janeiro de 2013

Um livro


Nancy era invariavelmente a última pessoa da família a se recolher; (...) Naquela noite, depois de secar e escovar os cabelos, prendendo-os com um lenço vaporoso, deixou separadas as roupas que pretendia usar na manhã seguinte para ir à igreja: meias de náilon, sapatos pretos sem salto, um vestido vermelho de veludo - o mais bonito que tinha, que ela mesmo fizera. Seria o vestido com que a enterrariam.

O trecho acima já vale o livro. Nos parágrafos anteriores, com a descrição de Truman Capote da rotina da família Clutter - e de Nancy Clutter, a filha adolescente, em particular - corre-se o risco de esquecer o que vai acontecer no dia seguinte. A última frase do parágrafo surge pra lembrar e chocar. E consegue. Os detalhes todos do livro A sangue frio são obtidos mezzo descrição (com base nas entrevistas com os habitantes de Holcomb e com os dois jovens que mataram os Clutter) e mezzo licença poética de Capote pra reconstruir os pensamentos e ações dos Clutter no último dia. Não é exatamente jornalismo e não é registro acadêmico - o que explica a antipatia do texto nestes meios ao chamado jornalismo literário ou romance de ficção (como chamava Capote) - mas é, pra mim, um dos grandes trabalhos na tentativa de compreender a maldade (o outro é Eichmann em Jerusalém, da Hannah Arendt). Diferente de Arendt, que nunca sentiu nenhuma simpatia por Eichmann, apenas percebeu que não se tratava de nenhum demônio, Capote se envolveu com os dois jovens que assassinaram os Clutter ao longo das sessões de entrevistas, principalmente com Perry Smith. Tornou-se um confidente, talvez mais do que isso, a ponto de, anos depois, ser o convidado que os dois condenados chamaram pra assistir a execução. Richard Hickock e Perry Smith assassinaram brutalmente (parece que Smith foi quem matou) numa noite em Holcomb o casal de fazendeiros Herbert e Bonnie Clutter e seus filhos adolescentes, Nancy e Kenyon (16 e 15 anos respectivamente). Smith e Hickock passavam casualmente por Holcomb, decidiram assaltar uma casa, escolheram a dos Clutter. Sem qualquer resistência, sem outro motivo, os quatro foram mortos. Confesso que não consegui sentir nenhum tipo de compaixão por Smith ou Hickock e esse é um dos méritos do relato de Capote. Pobreza, maus tratos na infância, perturbações psicológicas, o quadro dos assassinos não é muito diferente de milhões de jovens, mas a cena na fazendo dos Clutter sim. Capote trata dos Clutter, de Smith e de Hickock, mas trata também do que fazer com a maldade extrema e quem é capaz dessa maldade. Não é pouca coisa.

O desejo de morte que alimenta a punição penal é compreensível, mas no limite da pessoa, do indivíduo, não do Estado. E quem escreve aqui não é exatamente alguém que valoriza todas as formas de vida ou que acha que só deus pode tirar ou coisa que o valha. Tenho meus momentos - quase diários - de querer estrangular um ou dois indivíduos, mas, como disse, é problema meu, não do Estado - e acho deprimente essas campanhas de familiares com a camiseta com foto da vítima assassinada pedindo pena de morte no Brasil ou redução da idade pra punição. Deprimente e mórbido. Não é função do Estado e não funciona quando é. Nunca vai funcionar. Apenas isso.

Há um erro terrível de julgamento que acha que quanto pior o tratamento dado aos criminosos melhor "aqui fora". Não é. Um indicador simples de estado civilizatório (termo ruim, eu sei) é o tratamento dado aos "problemáticos". E quanto pior o tratamento lá "dentro", maior a merda aqui "fora". Isso posto, por princípio, não mataria os assassinos dos Clutter, mas lendo A Sangue Frio não senti nenhuma pena dos dois. Soltos, argumentariam os defensores da pena de morte, Smith e Hickock voltariam a matar. É bem provável, mas presos não pareciam incomodar e esse é um ponto chave: a pena de morte não contribui em nada pra diminuir a população carcerária. Na prática o cara só pensa na possibilidade de ser executado depois de preso ou quando está sendo perseguido pela polícia, não antes de cometer um crime. Não sei bem o que faria, mas a prisão parecia um bom lugar pro Perry Smith e Richard Hickock. O problema, lá como aqui, é que tem muita gente na prisão que jamais devia ter ido pra lá - e esse número alto de presos é justamente um dos argumentos dos que defendem a execução dos "incorrigíveis", num circuito fechado que já não responde mais à lógica, mas ao desejo de morte. Dos dois lados.

Enquanto Capote escrevia sobre a morte dos Clutter pra revista New Yorker, Hannah Arendt relatava o julgamento de Eichmann pra mesma revista. Mais de cinquenta anos depois da morte dos Clutter e quase o mesmo tanto do enforcamento dos assassinos,  nada indica qualquer redução no ímpeto assassino lá nos EUA - e poderia citar aqui os já rotineiros massacres cometidos por jovens armados nas escolas americanas. Em Jerusalém, quase no mesmo período do julgamento de Smith e Hickock, o oficial da SS nazista Adolf Eichmann também foi condenado e enforcado por participar ativamente da Solução Final do problema judeu. Hoje o Estado judeu cria e mantém campos de concentração na Palestina ocupada.

Uma observação: não bastasse a visão original de um crime terrível contada no livro A Sangue Frio, pra quem já morou numa cidadezinha minúscula - a redundância é porque é bem pequena mesmo ("poucos habitantes do próprio estado do Kansas já tinham ouvido falar") - do interior, mesmo do Brasil, vai conseguir imaginar o que foi a chegada de uma figura como Truman Capote na cidade pra passar uns tempos ali (e logo depois do massacre de uma das famílias mais conhecidas do lugar), justamente pra fuçar na grande tragédia local. Pelas descrições e imagens de Capote, era um sujeito afetadíssimo, baixinho e frequentador assíduo do Café Society de Nova York. A colaboração dos moradores (e dos assassinos) deve ter sido um pequeno milagre de Capote - ou, bem provável, de sua amiga, também escritora, Harper Lee (do livro clássico To Kill a Mockingbird -  que virou um filme de tribunal com o Gregory Peck, não lembro o título em português, acho que é o sol é para todos ou algo maluco assim) que acompanhou Capote a Holcomb e deve ter ajudado muito no contato com os locais - o Ivan Lessa, na introdução do livro pela Cia das Letras diz que Capote deve ter hipnotizados os moradores, pode ser.

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