Parabéns às mentes criativas que reservaram aos intervalos da rádio Itapema de Florianópolis comentários interessantissimos sobre "moda, tendências, gastronomia e qualidade de vida" - ou outros termos tão sem sentido quanto. Assim, se você quer deixar a rádio ligada na Itapema, ou você fica com o controle remoto de prontidão pra sacar ao primeiro aviso da vinheta dos colunistas descolados que invadem o intervalo, ou você vai ter que ouvir muita, mas muita porcaria em forma de pitadas de sabedoria.
Acho realmente curioso olhar pro espelho elitista brasileiro e ver a autoimagem cool, inteligente e antenada que parecem enxergar quando olham ali. Digo isso pois a rádio em questão não toca as músicas das rádios FM normais, mas os chamados clássicos do rock e MPB e (muitas) versões da bossa nova. Não é muito do meu gosto, mas funciona pra acalmar o "som ao redor" enquanto tento ler e não estou com paciência pra ficar trocando meus cds do Led Zeppelin do aparelho. Voltando à auto imagem da elite, pra justificar tal miragem usam um arsenal do inferno de clichés e lugares comuns pra encobrir a completa ausência de um raciocínio - qualquer um - verdadeiro. Uma espécie de Clube da Luta invertido onde ao invés de socos e pontapés os maurícios e patrícias aplicam clichés de cultura (do que acham que é) e responsabilidade social um no outro pra elevar a famigerada autoestima de classe.
Assim num originalíssimo quadro intitulado pequenos gestos, grandes atitudes, um cara fala sobre as sacolinhas de plástico, torneiras fechadas, apagar as luzes e outras coisas que acham que vai salvar o mundo. São tantas as besteiras que o cara ontem resolveu falar sobre estatísticas de energia da União Européia, destacando (e aprovando) uma mudança com o aumento na utilização de fontes renováveis (fetiche que só atrapalha quem luta de fato por isso) de energia pelos países da região. Como esse tipo de pensamento pronto não liga muito pra lógica da coisa, após anunciar uma alteração radical no padrão energético (segundo a nota) dos países da União Européia, o colunista aplica o bordão "pequenos gestos, grandes atitudes". Genial. Imagino um grande gesto como seria.
Mas a campeã mesmo é uma tal de Samira Campos, dona da significativa coluna chamada estilo. Um mero descuido na localização do controle remoto vai te causar danos cerebrais consideravelmente graves se você for obrigado a ouvir dois ou mais comentários da madame. Na primeira vez que me pegou desprevenido, respirei fundo, meio tenso, acreditando na minha força de caráter, mas falhei miseravelmente. Tremi e meu pobre aparelho de som quase pagou com a vida pela minha fraqueza. Nessas horas meu pãodurismo sempre me impede de atos inconsequentes. Após um lenga lenga sem fim sobre alguma coisa amarela que as mulheres executivas descoladas estão usando novamente - tipo de lenga lenga que causa danos também ao estômago - a madame arrematou em triunfo "o meu, por exemplo, comprei na Europa" (ou algo do tipo). Que bom, fico feliz que alguém vá a Europa pra comprar breguices amarelas. Por que eu tenho que saber disso numa rádio é dessas coisas da natureza humana que me comovem. Na outra vez que titubeei e deixei a bola passar, a madame começou a coluna com "Deu no New York Times". Juro. Já com o espírito preparado e o caráter endurecido pela provação da coluna anterior, consegui abstrair as bobagens seguintes, quase até o fim. Pra arrematar, no que parece o estilo virtuosi da madame, ela diz "não sei se precisa (cita o assunto da bobagem da nota), mas sei que o que importa é ser original." Ela só fala clichés, começa uma nota com "deu no New York Times" pra seguir com um "case de sucesso" e acha perfeitamente normal concluir com uma exaltação da pensamento original. Fantástico. E acham que analfabeto funcional é o outro. Tem também as inevitáveis colunas onde a madame ensina as serviçais (trabalhadoras de lojas chiques) como não deixá-la irritada na sua árdua rotina de fazer compras.
Tem também uma especialista em design que fala o que especialistas em design devem dizer por aí e um cara que fala das maravilhas duma pequena vila no Cazaquistão ou outro lugar remoto e pergunta "bora lá"? Sim, vamos, to fazendo a mala. Outro, o único com sotaque mané, fala sobre comida - e é a única dessas colunas com algum interesse.Tem uma moça que fala banalidades do Hawaii ou Manhattan pra "ilha de cá" e, claro, não poderiam faltar as dicas de consumo pros nobres ouvintes. A Jaguar fez um carro exclusivo pra você. Preço R$ (ou U$, tanto faz) 1,5 milhão. Bolsa descolada, R$ 17 mil. Sapatos sofisticados: 5 mil. Paletó de hermenildo ou hermenegildo seiláoque: 25 mil. Público AAA+plus-over é isto.
Realmente se isso é pensamento antenado pra quem "aprecia cultura", fico pensando qual vai ser o conceito de cultura num futuro próximo. Bem próximo, tipo hoje à noite. Sei que tenho que procurar O Som ao Redor - que todo mundo tá chamando de o melhor filme brasileiro em muito tempo - num cinema de arte, desses que as pessoas cool e antenadas de Floripa não sabem da existência. Vai saber o que os ouvintes da Samira Campos e seu programa estilo vão entender por arte em alguns anos. Argo, do Ben Affleck, sucesso de bilheteria e candidato a tudo que é prêmio nos EUA, aqui passou escondido. Leram - os programadores de cinema - Irã escrito na sinopse e pensaram no Kiorostami e concluído que era um filme de arte. Olho na programação do cinema de shopping aqui perto: O Hobbit, De pernas pro ar 2 (isso quer dizer que tem o 1), João e Maria - caçadores de bruxas (pelamordedeus), Jack Reacher, Uma família em apuros, Sammy 2 e Detona Ralph. E pré-estréia do Django do Tarantino pra aliviar a barra. Pelo andar da coisa logo os novos do Tarantino vão passar somente nos circuitos alternativos aqui em Floripa. Mas o Jaguar já deve ter ido pra garagem. E não mordeu ninguém.
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