Sim, é feio. Muito feio. Mas dei uma carteirada - e olha que não sou ninguém, não tenho salário nem carteira (além da de motorista, vencida, aliás). E, no entanto, apliquei a maldita carteirada mesmo assim. Não, não falei o famigerado "sabe com quem está falando", até por ser completamente inócuo no meu caso. Não posso prender, desprender ou mandar prender ninguém. Diga-se a meu favor que fiz de tudo, tudo mesmo, pra evitar a coisa toda. Fiquei ali, quietinho, na mesa de boteco, bebendo minha cerveja e falando apenas com os conhecidos mais antigos na cidade onde cresci e já não moro faz tempo. Eis que chega o amigo do amigo ou namorado da amiga, algo assim, e, na conversa geral, alguém deixa escapar que eu fiz doutorado recentemente. Pronto, foi dada a licença pro cidadão falar como se fosse meu velho amigo - "Fala aí, sobre o que você fez doutorado? Conta aí". Ao confirmar que o doutorado era em sociologia e não numa área de verdade, uma ciência importante, ou ao menos útil, ouve-se o inevitável "mas na prática contribui pra quê isso?", ainda que eu não tenha mencionado quase nada sobre qualquer coisa. Até aí, nada incomum, os clichés de
sempre que entram num ouvido e saem pelo outro sem causar maiores
danos no caminho. Continuando nos lugares comuns, chegamos ao "quanto custa esse troço? pagou quanto?". Tentanto evitar esse tema até ali, pelo inevitável desdobramento da conversa, sou obrigado a mencionar que fui bolsista - e numa universidade pública. Aí fodeu. Mais de quinze minutos de supostas piadas sobre mamar nas tetas e coisas assim, "ganhar pra coçar o saco? maravilha hein?". Um minuto. Dois minutos. Já não falava nada há algum tempo enquanto olhava a figura falando, falando e falando sobre a mamata que eu tinha arranjado - "quem te botou nessa?", é tudo indicação, dizia o especialista em tudo. Não achei que valia a pena mencionar que nunca tinha falado com ninguém na cidade ou na universidade antes da prova e entrevista de seleção, ou que li pra caralho pra fazer a prova. Sete minutos. Oito minutos. O tempo padrão desse tipo de conversa chata já tinha extrapolado em vários minutos. O boi sentado à mesa falava agora - ou melhor, discursava - sobre seu dinheiro pago em impostos indo pro ralo com esse negócio de bolsas de estudo, bolsa família e essas coisas todas. Privatizar era a palavra mágica, a resposta que ele mesmo dava pra qualquer complicação - também numa classificação própria do que é complicação ou não. Dez minutos. Achei que já tinha esgotado todas as possibilidades de repetir chavões sobre meu tempo de estudo e ia me deixar em paz. Doze minutos. Quem navega por lugares comuns nunca fica sem assunto - e nunca esgota um. O cara se tocou que tinha praia na cidade onde fiz doutorado. Quatorze minutos. Supostas piadas sobre ganhar pra surfar, pra pegar onda. Minha pele insensatamente branca, em dezembro, não produz nenhum tipo de alerta ao bovino sobre o equívoco praiano, e continuam as supostas piadas sobre a vida boa na areia enquanto ele tinha que pastar - ou trabalhar. Acho que ele falou trabalhar. Quinze minutos. Paciência acaba. Não devia, eu sei. Mas também, nunca fui do tipo que quer fazer amigos e meus velhos conhecidos na mesa estavam até estranhando meu neopacifismo. Dezesseis minutos. Foda-se. Cara, tem uma caderneta aqui no meu bolso, me empresta uma caneta moça. Valeu, toma aqui cidadão, caderneta e caneta, a noite tá começando, você tem todo tempo pra escrever um parágrafo, um paragrafozinho só. Mas um paragrafozinho que preste. Pode ser sobre o que você escolher, sobre economia, política, física quântica, mulher bonita, teu time de futebol, a porra do assunto que te interessar, mas até sairmos dessa mesa, daqui algumas horas, você vai ler pra todo mundo em voz alta. Se a maioria aqui achar que presta mesmo, que tá bem escrito, que tem alguma coisa interessante, eu pago tua parte na conta. Esse vai ser teu dinheiro fácil, tua mamata. Pena que não dá pra arrumar uma praia aqui pra te ajudar. Topa?
Não foi bem carteirada, foi mais uma cadernetada, mas produziu o efeito desejado. Silêncio.
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