quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Confiar, trair e fatiar

Confiança. Você passa anos, décadas, uma vida, construindo uma relação. Entre tantos materiais utilizados, concretos ou abstratos, está lá, em destaque, a tal da confiança. Mas, como o Maracanã, essa é uma obra que, sabemos, nunca terá fim. Pode até parecer pronto, pode funcionar, mas então é reformado. E reformado. Como numa reforma eterna, confiar é um pacto que tenta preservar as estruturas de uma relação, enquanto o resto se modifica. As partes são alteradas, mas o todo que se molda, o resultado final, não importa o grau de planejamento, é sempre uma surpresa, pois a confiança nunca pode ser totalizante. Não existe e nunca existirá uma confiança total, mesmo que nossa irracionalidade insista nisso. Nunca, nunca mesmo, a confiança pode ser uma questão concluída. A confiança plena, pronta, acabada, inabalável, como uma Quimera, não pode existir no plano real, apenas lá, na mitologia.

E ainda assim, chega um momento em que as coisas parecem convergir, e entre o mito e o concreto nasce algo que consegue preencher as expectativas. Uma confiança, se não plena, ao menos plenamente satisfatória. Uma série de acordos mutuamente aceitos que tornam possível uma relação harmoniosa, de convivência prazerosa, até nos piores momentos das reformas, sempre cheias de piores momentos. E, então, na hora mais crítica possível, naquele instante onde tudo precisava acontecer como vinha acontecendo, com as responsabilidades, os papéis e funções perfeitamente delineados e, na aparência, aceitos, o horror acontece. Tão previsível, tão difícil de antecipar.

Sua cara empalidece, olhos examinam sem ver, o que vêem faz pouco sentido. Não naquele lugar, cheio de boas lembranças. Mas é verdade. O seu açougue, de tanta confiança, não cortou a carne em tirinhas como tinha prometido na embalagem. A panela já está com azeite e manteiga aquecidos, na temperatura ideal - esse santo graal da culinária que, quando atingida (e perdida) nunca mais vai se repetir. Os ingredientes todos do estrogonofe esperando sua vez, na delicada e imutável ordem do preparo do prato. A perfeição da cor e sabor do conhaque devidamente testados. E retestados. Cogumelos champignons, in natura, fatiados na espessura ideal, aguardando, juntamente com cebolas e alho, tão micropicados quanto possível, em raríssimo nível de precisão. Creme de leite fresco, mais o caldo elaborado com partes de carne, ossos e especiarias, lentamente cozido até encorpar, na consistência e sabor, além de um bom catchup - daquela marca que quase chegou à Casa Branca, nos Estados Unidos, todos nos respectivos recipientes, ansiosos, esperando o aviso mágico pra entrar em cena. A embalagem da carne é aberta. Sim, devia ter aberto antes. Mas com confiança é assim, você deixa de fazer os movimentos óbvios, checar, conferir detalhes importantes. Afinal, confia. E a carne não está cortada em tirinhas. Não adianta olhar novamente, enquanto na panela a manteiga avisa, pela cor e pelo odor, que já não vai mais dar suporte aos meus erros de julgamento. Outro olhar pra embalagem, patético na esperança inútil. Ainda são semi-tiras, com mais pedaços unidos do que separados - o que só aumenta a sensação de quebra de confiança. Não foi um engano apenas. Um esquecimento. Houve uma tentativa deliberada de falsear a verdade. Cortar apressadamente, sem cuidado, sem carinho, apenas pra cumprir tabela. E cobrar a mais por isso. A confiança, aquela construção lenta, agora, em segundos, escorre pro ralo da pia, junto com o sangue das tirinhas de carne, mais unidas do que separadas, como numa vermelha utopia socialista. Não há outra alternativa possível, é preciso pegar um instrumento de corte bem afiado, respirar fundo, nervos expostos. E fatiar a carne, finalizando o trabalho fraudado. O ritmo do preparo, a química dos ingredientes, tudo comprometido. A temperatura ideal da manteiga e do azeite está perdida. Pra sempre.

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