quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Descrições

Toca o telefone, atendo.

É do aeroporto? Pergunta uma moça.
Não, respondo. Aqui é minha casa.
Ahh, queria ver uma passagem pro meu chefe, você por acaso não sabe o número do aeroporto aí? Tô noutra cidade, por favor. 

(Obviamente numa época pré-internet)

Posso dar uma olhada na lista sim, sem problema (já reparando que a voz da moça era muito bonita).

Achado e passado o número, a conversa continuou animada. Papo vai, papo vem, entramos no tradicional momento da descrição pessoal, já antecipando um provável encontro, pois as cidades eram bem próximas. 

Então ela começa.

Olha, sou loira, alta e tenho olhos verdes.

Cometo aí uma das minhas tradicionais grosserias, dessas que o pensamento só chega muito depois da fala.

Ahh tá, no telefone todo mundo é loiro, alto e tem olhos verdes ou azuis.

Sim, estupidez que a pouca idade poderia desculpar, não fosse esse um comportamento habitual ainda hoje, quase vinte anos depois. Estupidez muito maior pelo desdobramento previsível do diálogo.

Pois acredite se quiser (brava). E você bonitão (mais brava do que irônica)? Como você é?

Somente ali percebi o tamanho da besteira que tinha dito.

Putz, bom, na verdade eu sou loiro, alto, olhos verdes. Mas uso óculos viu.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Violência cai em Pinheirinho depois de reintegração, diz a Folha

Genial a manchete da Folha, que "ouviu alguns moradores" pra constatar (e botar na capa do UOL) que a violência diminuiu depois da reintegração (eufemismo pra massacre injustificado contra mulheres e crianças). A Folha dá sua receita pra resolver a questão de segurança pública: tropa de choque expulsa os pobres na porrada e um anos depois entrevista o dono da padaria pra dizer que a coisa melhorou muito. Imagino esta Folha de hoje cobrindo a Segunda Guerra: Cai o número de judeus mortos por ataque do coração após Auschwitz.

El Rey

Em 2014 teremos a honra de alcançar o México no futebol. Não exatamente dentro de campo, mas promovendo uma copa do mundo que irá coroar o melhor de todos no futebol. Em 70 os mexicanos deram a coroa pro Pelé. Em 86 foi a vez do Maradona. Ano que vem vamos desempatar essa coisa coroando Leonel Messi como o maior. 

Maradona e Zico foram os dois maiores jogadores que acompanhei. Zico perdeu as copas de 78, 82 e 86. Maradona arrebentou com a copa de 86 e, somando o que fazia pelo Napoli resolveu a disputa com o Zico (e Platini, Rummenigge...) ameaçando o reinado do Pelé no topo do mundo futebolístico. Nunca vi Pelé jogar e pelos números e imagens antigas deve ter sido espetacular. Mas hoje o mundo todo vê Messi arrebentar jogo sim, jogo também. Nunca tinha visto isso, o cara joga bem, muito bem, espetacularmente bem todo santo dia. Já tá todo mundo colocando o Messi como o maior de todos, claro, pra fúria dos cronistas mais antigos aqui do Brasil.

Pro meu gosto Messi carrega uma imensa vantagem: é quieto. Pelé e Maradona são dois chatos monumentais. O brasileiro foi pioneiro na lógica do atleta famoso que topa tudo por dinheiro (Ronaldo fenômeno aprendeu bem). Não fala nada com nada e quando faz denúncia grave de corrupção é capaz de abraçar o denunciado e anunciar paz (e um belo contrato de publicidade) logo depois. Pelé jamais recusa o papel de laranja num grande evento e isso ficou muito claro pra todo mundo. Receita perfeita pro Edson destruir o mito Pelé. Vai conseguir. Na copa de 94 assistia os jogos do Brasil com meus colegas de trabalho, quando o Pelé começava a comentar (na Globo) algum lance todo mundo gritava "deu Pelé, chega, quieto Pelé". Adeus rei. De lá pra cá só piorou. Maradona ao menos é divertido, não faz o tipo vendido, faz mais o tipo trágico, mas acaba cansando também com as besteiras fatalistas que costuma soltar. O cargo de técnico da Argentina numa copa deve ter arranhado o mito. Um pouquinho ao menos.

Até aqui Messi só joga. E joga muito. Isto pode mudar, mas ele parece tão maluco por futebol que acho pouco provável que mude, apenas uma contusão grave pode desviar o cara do caminho óbvio. Ahhh, mas faltam três copas do mundo, berram os comentaristas brasileiros - os da Globo, normalmente. Pelé ganhou duas (62 foi de Garrincha, Pelé saiu no começo da copa), Maradona uma e, ainda assim, pra muita gente Maradona é melhor que Pelé. Se Messi continuar arrebentando no Barcelona e ganhando mais Liga dos Campeões, os jornalistas brasileiros vão ficar falando sozinhos - o que, aliás, deveria ser regra. Mesmo assim acho que em 2014 o Messi resolve isso elimando o Brasil na semifinal e ganhando da Espanha na final no Maracanã. E ponto final na discussão (até parece).

PS - Tem um video no you tube dum jornalista brasileiro no Redação Sportv todo exaltado quando um jornalista inglês coloca sua opinião sobre o Messi já ser melhor que o Pelé: "faltam 3 copas, precisa de copa do mundo...." berrava o brasileiro. Há bem pouco tempo os brasileiros davam risada dos argentinos que defendiam o Maradona sobre o Pelé, agora, num futuro próximo, nossos jornalistas esportivos é que vão divertir o mundo berrando Pelé, Pelé....com todo mundo já dando a coroa ao Messi, ainda mais depois da vitória da Argentina na final do Maracanã com dois gols do baixinho.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Itapemices

Parabéns às mentes criativas que reservaram aos intervalos da rádio Itapema de Florianópolis comentários interessantissimos sobre "moda, tendências, gastronomia e qualidade de vida" - ou outros termos tão sem sentido quanto. Assim, se você quer deixar a rádio ligada na Itapema, ou você fica com o controle remoto de prontidão pra sacar ao primeiro aviso da vinheta dos colunistas descolados que invadem o intervalo, ou você vai ter que ouvir muita, mas muita porcaria em forma de pitadas de sabedoria. 

Acho realmente curioso olhar pro espelho elitista brasileiro e ver a autoimagem cool, inteligente e antenada que parecem enxergar quando olham ali. Digo isso pois a rádio em questão não toca as músicas das rádios FM normais, mas os chamados clássicos do rock e MPB e (muitas) versões da bossa nova. Não é muito do meu gosto, mas funciona pra acalmar o "som ao redor" enquanto tento ler e não estou com paciência pra ficar trocando meus cds do Led Zeppelin do aparelho. Voltando à auto imagem da elite, pra justificar tal miragem usam um arsenal do inferno de clichés e lugares comuns pra encobrir a completa ausência de um raciocínio - qualquer um - verdadeiro. Uma espécie de Clube da Luta invertido onde ao invés de socos e pontapés os maurícios e patrícias aplicam clichés de cultura (do que acham que é) e responsabilidade social um no outro pra elevar a famigerada autoestima de classe. 

Assim num originalíssimo quadro intitulado pequenos gestos, grandes atitudes, um cara fala sobre as sacolinhas de plástico, torneiras fechadas, apagar as luzes e outras coisas que acham que vai salvar o mundo. São tantas as besteiras que o cara ontem resolveu falar sobre estatísticas de energia da União Européia, destacando (e aprovando) uma mudança com o aumento na utilização de fontes renováveis (fetiche que só atrapalha quem luta de fato por isso) de energia pelos países da região. Como esse tipo de pensamento pronto não liga muito pra lógica da coisa, após anunciar uma alteração radical no padrão energético (segundo a nota) dos países da União Européia, o colunista aplica o bordão "pequenos gestos, grandes atitudes". Genial. Imagino um grande gesto como seria.

Mas a campeã mesmo é uma tal de Samira Campos, dona da significativa coluna chamada estilo. Um mero descuido na localização do controle remoto vai te causar danos cerebrais consideravelmente graves se você for obrigado a ouvir dois ou mais comentários da madame. Na primeira vez que me pegou desprevenido, respirei fundo, meio tenso, acreditando na minha força de caráter, mas falhei miseravelmente. Tremi e meu pobre aparelho de som quase pagou com a vida pela minha fraqueza. Nessas horas meu pãodurismo sempre me impede de atos inconsequentes. Após um lenga lenga sem fim sobre alguma coisa amarela que as mulheres executivas descoladas estão usando novamente - tipo de lenga lenga que causa danos também ao estômago - a madame arrematou em triunfo "o meu, por exemplo, comprei na Europa" (ou algo do tipo). Que bom, fico feliz que alguém vá a Europa pra comprar breguices amarelas. Por que eu tenho que saber disso numa rádio é dessas coisas da natureza humana que me comovem. Na outra vez que titubeei e deixei a bola passar, a madame começou a coluna com "Deu no New York Times". Juro. Já com o espírito preparado e o caráter endurecido pela provação da coluna anterior, consegui abstrair as bobagens seguintes, quase até o fim. Pra arrematar, no que parece o estilo virtuosi da madame, ela diz "não sei se precisa (cita o assunto da bobagem da nota), mas sei que o que importa é ser original." Ela só fala clichés, começa uma nota com "deu no New York Times" pra seguir com um "case de sucesso" e acha perfeitamente normal concluir com uma exaltação da pensamento original. Fantástico. E acham que analfabeto funcional é o outro. Tem também as inevitáveis colunas onde a madame ensina as serviçais (trabalhadoras de lojas chiques) como não deixá-la irritada na sua árdua rotina de fazer compras.

Tem também uma especialista em design que fala o que especialistas em design devem dizer por aí e um cara que fala das maravilhas duma pequena vila no Cazaquistão ou outro lugar remoto e pergunta "bora lá"? Sim, vamos, to fazendo a mala. Outro, o único com sotaque mané, fala sobre comida - e é a única dessas colunas com algum interesse.Tem uma moça que fala banalidades do Hawaii ou Manhattan pra "ilha de cá" e, claro, não poderiam faltar as dicas de consumo pros nobres ouvintes. A Jaguar fez um carro exclusivo pra você. Preço R$ (ou U$, tanto faz) 1,5 milhão. Bolsa descolada, R$ 17 mil. Sapatos sofisticados: 5 mil. Paletó de hermenildo ou hermenegildo seiláoque: 25 mil. Público AAA+plus-over é isto.

Realmente se isso é pensamento antenado pra quem "aprecia cultura", fico pensando qual vai ser o conceito de cultura num futuro próximo. Bem próximo, tipo hoje à noite. Sei que tenho que procurar O Som ao Redor   - que todo mundo tá chamando de o melhor filme brasileiro em muito tempo - num cinema de arte, desses que as pessoas cool e antenadas de Floripa não sabem da existência. Vai saber o que os ouvintes da Samira Campos e seu programa estilo vão entender por arte em alguns anos. Argo, do Ben Affleck, sucesso de bilheteria e candidato a tudo que é prêmio nos EUA, aqui passou escondido. Leram - os programadores de cinema - Irã escrito na sinopse e pensaram no Kiorostami e concluído que era um filme de arte. Olho na programação do cinema de shopping aqui perto: O Hobbit, De pernas pro ar 2 (isso quer dizer que tem o 1), João e Maria - caçadores de bruxas (pelamordedeus), Jack Reacher, Uma família em apuros, Sammy 2 e Detona Ralph. E pré-estréia do Django do Tarantino pra aliviar a barra. Pelo andar da coisa logo os novos do Tarantino vão passar somente nos circuitos alternativos aqui em Floripa. Mas o Jaguar já deve ter ido pra garagem. E não mordeu ninguém.


domingo, 13 de janeiro de 2013

Um livro


Nancy era invariavelmente a última pessoa da família a se recolher; (...) Naquela noite, depois de secar e escovar os cabelos, prendendo-os com um lenço vaporoso, deixou separadas as roupas que pretendia usar na manhã seguinte para ir à igreja: meias de náilon, sapatos pretos sem salto, um vestido vermelho de veludo - o mais bonito que tinha, que ela mesmo fizera. Seria o vestido com que a enterrariam.

O trecho acima já vale o livro. Nos parágrafos anteriores, com a descrição de Truman Capote da rotina da família Clutter - e de Nancy Clutter, a filha adolescente, em particular - corre-se o risco de esquecer o que vai acontecer no dia seguinte. A última frase do parágrafo surge pra lembrar e chocar. E consegue. Os detalhes todos do livro A sangue frio são obtidos mezzo descrição (com base nas entrevistas com os habitantes de Holcomb e com os dois jovens que mataram os Clutter) e mezzo licença poética de Capote pra reconstruir os pensamentos e ações dos Clutter no último dia. Não é exatamente jornalismo e não é registro acadêmico - o que explica a antipatia do texto nestes meios ao chamado jornalismo literário ou romance de ficção (como chamava Capote) - mas é, pra mim, um dos grandes trabalhos na tentativa de compreender a maldade (o outro é Eichmann em Jerusalém, da Hannah Arendt). Diferente de Arendt, que nunca sentiu nenhuma simpatia por Eichmann, apenas percebeu que não se tratava de nenhum demônio, Capote se envolveu com os dois jovens que assassinaram os Clutter ao longo das sessões de entrevistas, principalmente com Perry Smith. Tornou-se um confidente, talvez mais do que isso, a ponto de, anos depois, ser o convidado que os dois condenados chamaram pra assistir a execução. Richard Hickock e Perry Smith assassinaram brutalmente (parece que Smith foi quem matou) numa noite em Holcomb o casal de fazendeiros Herbert e Bonnie Clutter e seus filhos adolescentes, Nancy e Kenyon (16 e 15 anos respectivamente). Smith e Hickock passavam casualmente por Holcomb, decidiram assaltar uma casa, escolheram a dos Clutter. Sem qualquer resistência, sem outro motivo, os quatro foram mortos. Confesso que não consegui sentir nenhum tipo de compaixão por Smith ou Hickock e esse é um dos méritos do relato de Capote. Pobreza, maus tratos na infância, perturbações psicológicas, o quadro dos assassinos não é muito diferente de milhões de jovens, mas a cena na fazendo dos Clutter sim. Capote trata dos Clutter, de Smith e de Hickock, mas trata também do que fazer com a maldade extrema e quem é capaz dessa maldade. Não é pouca coisa.

O desejo de morte que alimenta a punição penal é compreensível, mas no limite da pessoa, do indivíduo, não do Estado. E quem escreve aqui não é exatamente alguém que valoriza todas as formas de vida ou que acha que só deus pode tirar ou coisa que o valha. Tenho meus momentos - quase diários - de querer estrangular um ou dois indivíduos, mas, como disse, é problema meu, não do Estado - e acho deprimente essas campanhas de familiares com a camiseta com foto da vítima assassinada pedindo pena de morte no Brasil ou redução da idade pra punição. Deprimente e mórbido. Não é função do Estado e não funciona quando é. Nunca vai funcionar. Apenas isso.

Há um erro terrível de julgamento que acha que quanto pior o tratamento dado aos criminosos melhor "aqui fora". Não é. Um indicador simples de estado civilizatório (termo ruim, eu sei) é o tratamento dado aos "problemáticos". E quanto pior o tratamento lá "dentro", maior a merda aqui "fora". Isso posto, por princípio, não mataria os assassinos dos Clutter, mas lendo A Sangue Frio não senti nenhuma pena dos dois. Soltos, argumentariam os defensores da pena de morte, Smith e Hickock voltariam a matar. É bem provável, mas presos não pareciam incomodar e esse é um ponto chave: a pena de morte não contribui em nada pra diminuir a população carcerária. Na prática o cara só pensa na possibilidade de ser executado depois de preso ou quando está sendo perseguido pela polícia, não antes de cometer um crime. Não sei bem o que faria, mas a prisão parecia um bom lugar pro Perry Smith e Richard Hickock. O problema, lá como aqui, é que tem muita gente na prisão que jamais devia ter ido pra lá - e esse número alto de presos é justamente um dos argumentos dos que defendem a execução dos "incorrigíveis", num circuito fechado que já não responde mais à lógica, mas ao desejo de morte. Dos dois lados.

Enquanto Capote escrevia sobre a morte dos Clutter pra revista New Yorker, Hannah Arendt relatava o julgamento de Eichmann pra mesma revista. Mais de cinquenta anos depois da morte dos Clutter e quase o mesmo tanto do enforcamento dos assassinos,  nada indica qualquer redução no ímpeto assassino lá nos EUA - e poderia citar aqui os já rotineiros massacres cometidos por jovens armados nas escolas americanas. Em Jerusalém, quase no mesmo período do julgamento de Smith e Hickock, o oficial da SS nazista Adolf Eichmann também foi condenado e enforcado por participar ativamente da Solução Final do problema judeu. Hoje o Estado judeu cria e mantém campos de concentração na Palestina ocupada.

Uma observação: não bastasse a visão original de um crime terrível contada no livro A Sangue Frio, pra quem já morou numa cidadezinha minúscula - a redundância é porque é bem pequena mesmo ("poucos habitantes do próprio estado do Kansas já tinham ouvido falar") - do interior, mesmo do Brasil, vai conseguir imaginar o que foi a chegada de uma figura como Truman Capote na cidade pra passar uns tempos ali (e logo depois do massacre de uma das famílias mais conhecidas do lugar), justamente pra fuçar na grande tragédia local. Pelas descrições e imagens de Capote, era um sujeito afetadíssimo, baixinho e frequentador assíduo do Café Society de Nova York. A colaboração dos moradores (e dos assassinos) deve ter sido um pequeno milagre de Capote - ou, bem provável, de sua amiga, também escritora, Harper Lee (do livro clássico To Kill a Mockingbird -  que virou um filme de tribunal com o Gregory Peck, não lembro o título em português, acho que é o sol é para todos ou algo maluco assim) que acompanhou Capote a Holcomb e deve ter ajudado muito no contato com os locais - o Ivan Lessa, na introdução do livro pela Cia das Letras diz que Capote deve ter hipnotizados os moradores, pode ser.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Confiar, trair e fatiar

Confiança. Você passa anos, décadas, uma vida, construindo uma relação. Entre tantos materiais utilizados, concretos ou abstratos, está lá, em destaque, a tal da confiança. Mas, como o Maracanã, essa é uma obra que, sabemos, nunca terá fim. Pode até parecer pronto, pode funcionar, mas então é reformado. E reformado. Como numa reforma eterna, confiar é um pacto que tenta preservar as estruturas de uma relação, enquanto o resto se modifica. As partes são alteradas, mas o todo que se molda, o resultado final, não importa o grau de planejamento, é sempre uma surpresa, pois a confiança nunca pode ser totalizante. Não existe e nunca existirá uma confiança total, mesmo que nossa irracionalidade insista nisso. Nunca, nunca mesmo, a confiança pode ser uma questão concluída. A confiança plena, pronta, acabada, inabalável, como uma Quimera, não pode existir no plano real, apenas lá, na mitologia.

E ainda assim, chega um momento em que as coisas parecem convergir, e entre o mito e o concreto nasce algo que consegue preencher as expectativas. Uma confiança, se não plena, ao menos plenamente satisfatória. Uma série de acordos mutuamente aceitos que tornam possível uma relação harmoniosa, de convivência prazerosa, até nos piores momentos das reformas, sempre cheias de piores momentos. E, então, na hora mais crítica possível, naquele instante onde tudo precisava acontecer como vinha acontecendo, com as responsabilidades, os papéis e funções perfeitamente delineados e, na aparência, aceitos, o horror acontece. Tão previsível, tão difícil de antecipar.

Sua cara empalidece, olhos examinam sem ver, o que vêem faz pouco sentido. Não naquele lugar, cheio de boas lembranças. Mas é verdade. O seu açougue, de tanta confiança, não cortou a carne em tirinhas como tinha prometido na embalagem. A panela já está com azeite e manteiga aquecidos, na temperatura ideal - esse santo graal da culinária que, quando atingida (e perdida) nunca mais vai se repetir. Os ingredientes todos do estrogonofe esperando sua vez, na delicada e imutável ordem do preparo do prato. A perfeição da cor e sabor do conhaque devidamente testados. E retestados. Cogumelos champignons, in natura, fatiados na espessura ideal, aguardando, juntamente com cebolas e alho, tão micropicados quanto possível, em raríssimo nível de precisão. Creme de leite fresco, mais o caldo elaborado com partes de carne, ossos e especiarias, lentamente cozido até encorpar, na consistência e sabor, além de um bom catchup - daquela marca que quase chegou à Casa Branca, nos Estados Unidos, todos nos respectivos recipientes, ansiosos, esperando o aviso mágico pra entrar em cena. A embalagem da carne é aberta. Sim, devia ter aberto antes. Mas com confiança é assim, você deixa de fazer os movimentos óbvios, checar, conferir detalhes importantes. Afinal, confia. E a carne não está cortada em tirinhas. Não adianta olhar novamente, enquanto na panela a manteiga avisa, pela cor e pelo odor, que já não vai mais dar suporte aos meus erros de julgamento. Outro olhar pra embalagem, patético na esperança inútil. Ainda são semi-tiras, com mais pedaços unidos do que separados - o que só aumenta a sensação de quebra de confiança. Não foi um engano apenas. Um esquecimento. Houve uma tentativa deliberada de falsear a verdade. Cortar apressadamente, sem cuidado, sem carinho, apenas pra cumprir tabela. E cobrar a mais por isso. A confiança, aquela construção lenta, agora, em segundos, escorre pro ralo da pia, junto com o sangue das tirinhas de carne, mais unidas do que separadas, como numa vermelha utopia socialista. Não há outra alternativa possível, é preciso pegar um instrumento de corte bem afiado, respirar fundo, nervos expostos. E fatiar a carne, finalizando o trabalho fraudado. O ritmo do preparo, a química dos ingredientes, tudo comprometido. A temperatura ideal da manteiga e do azeite está perdida. Pra sempre.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Carteirada

Sim, é feio. Muito feio. Mas dei uma carteirada - e olha que não sou ninguém, não tenho salário nem carteira (além da de motorista, vencida, aliás). E, no entanto, apliquei a maldita carteirada mesmo assim. Não, não falei o famigerado "sabe com quem está falando", até por ser completamente inócuo no meu caso. Não posso prender, desprender ou mandar prender ninguém. Diga-se a meu favor que fiz de tudo, tudo mesmo, pra evitar a coisa toda. Fiquei ali, quietinho, na mesa de boteco, bebendo minha cerveja e falando apenas com os conhecidos mais antigos na cidade onde cresci e já não moro faz tempo. Eis que chega o amigo do amigo ou namorado da amiga, algo assim, e, na conversa geral, alguém deixa escapar que eu fiz doutorado recentemente. Pronto, foi dada a licença pro cidadão falar como se fosse meu velho amigo - "Fala aí, sobre o que você fez doutorado? Conta aí". Ao confirmar que o doutorado era em sociologia e não numa área de verdade, uma ciência importante, ou ao menos útil, ouve-se o inevitável "mas na prática contribui pra quê isso?", ainda que eu não tenha mencionado quase nada sobre qualquer coisa. Até aí, nada incomum, os clichés de sempre que entram num ouvido e saem pelo outro sem causar maiores danos no caminho. Continuando nos lugares comuns, chegamos ao "quanto custa esse troço? pagou quanto?". Tentanto evitar esse tema até ali, pelo inevitável desdobramento da conversa, sou obrigado a mencionar que fui bolsista - e numa universidade pública. Aí fodeu. Mais de quinze minutos de supostas piadas sobre mamar nas tetas e coisas assim, "ganhar pra coçar o saco? maravilha hein?". Um  minuto. Dois minutos. Já não falava nada há algum tempo enquanto olhava a figura falando, falando e falando sobre a mamata que eu tinha arranjado -  "quem te botou nessa?", é tudo indicação, dizia o especialista em tudo. Não achei que valia a pena mencionar que nunca tinha falado com ninguém na cidade ou na universidade antes da prova e entrevista de seleção, ou que li pra caralho pra fazer a prova. Sete minutos. Oito minutos. O tempo padrão desse tipo de conversa chata já tinha extrapolado em vários minutos. O boi sentado à mesa falava agora - ou melhor, discursava - sobre seu dinheiro pago em impostos indo pro ralo com esse negócio de bolsas de estudo, bolsa família e essas coisas todas. Privatizar era a palavra mágica, a resposta que ele mesmo dava pra qualquer complicação - também  numa classificação própria do que é complicação ou não. Dez minutos. Achei que já tinha esgotado todas as possibilidades de repetir chavões sobre meu tempo de estudo e ia me deixar em paz. Doze minutos. Quem navega por lugares comuns nunca fica sem assunto - e nunca esgota um. O cara se tocou que tinha praia na cidade onde fiz doutorado. Quatorze minutos. Supostas piadas sobre ganhar pra surfar, pra pegar onda. Minha pele insensatamente branca, em dezembro, não produz nenhum tipo de alerta ao bovino sobre o equívoco praiano, e continuam as supostas piadas sobre a vida boa na areia enquanto ele tinha que pastar - ou trabalhar. Acho que ele falou trabalhar. Quinze minutos. Paciência acaba. Não devia, eu sei. Mas também, nunca fui do tipo que quer fazer amigos e meus velhos conhecidos na mesa estavam até estranhando meu neopacifismo. Dezesseis minutos. Foda-se. Cara, tem uma caderneta aqui no meu bolso, me empresta uma caneta moça. Valeu, toma aqui cidadão, caderneta e caneta, a noite tá começando, você tem todo tempo pra escrever um parágrafo, um paragrafozinho só. Mas um paragrafozinho que preste. Pode ser sobre o que você escolher, sobre economia, política, física quântica, mulher bonita, teu time de futebol, a porra do assunto que te interessar, mas até sairmos dessa mesa, daqui algumas horas, você vai ler pra todo mundo em voz alta. Se a  maioria aqui achar que presta mesmo, que tá bem escrito, que tem alguma coisa interessante, eu pago tua parte na conta. Esse vai ser teu dinheiro fácil, tua mamata. Pena que não dá pra arrumar uma praia aqui pra te ajudar. Topa?

Não foi bem carteirada, foi mais uma cadernetada, mas produziu o efeito desejado. Silêncio.