domingo, 12 de maio de 2013

Diagnósticos imprecisos


“Joaquim Barbosa seria meu candidato definitivo à presidência da república e estou certo que ele venceria no primeiro turno” - Roberto DaMatta

Pois é, quem escreveu isto é considerado, por muitos, um dos grandes intelectuais brasileiros de todos os tempos. Gosto de diversos pensadores do campo, digamos, conservador, como Hannah Arendt, Raymond Aron, Norbeto Bobbio... mesmo discordando bastante, aprendo lendo seus textos, sempre. Diz muito, contudo, sobre como as coisas são no conservadorismo brasileiro a profunda incapacidade de diagnósticos lúcidos - e não falo aqui dos colunistas de sempre, da Cantanhêde, do Josias, Jabor, Merval ou qualquer destes, mas falo de quem dispõe de todas as ferramentas pra este diagnóstico, mesmo à direita, como é o caso do Roberto DaMatta, tornado mais um destes ultraneocons, disposto a ser usado e abusado pela grande mídia - recebendo bem, e em dia, claro, como o João Ubaldo ou o Ferreira Gullar. Gente que poderia contribuir muito pro conservadorismo local, dar algo de profundo aos toscos superficiais da grande imprensa, mas têm optado, em conjunto, pelas mesmas abordagens, pela escrita com ódio de classe (ou de partido, ou do Lula) ditando cada palavra, nunca pelo aproveitamento, nos textos ao menos, da vida inteira dedicada à cultura que os tornou conhecidos e respeitados.

Não é uma questão de gostar ou não de Lula, Dilma ou do PT no poder, mas de saber que Lula, Dilma e o PT estão no poder, isto é fato, e muita gente gosta disto, fato, não opinião. Não adianta esses ultracons enfiar a cabeça no buraco, ficar dia e noite no balcão do café society, bebericando seu whisky com soda e trocando "idéias" com gente que pensa exatamente o mesmo sobre tudo (sim, isso serve pra muita gente na esquerda também), mas assusta ver um antropólogo com grandes trabalhos  expondo algo assim tão simplório, mesmo do lado conservador.

É desejo legítimo do conservadorismo exaltar Joaquim Barbosa e sua atuação contra o PT no STF, onde, bom lembrar, foi colocado pelo governo do PT, e onde dificilmente estaria se a coalização PSDB/DEM  - que ainda luta, no próprio STF, contra as medidas adotadas pelo PT pra inclusão de negros - ainda estivesse no controle do governo federal. Isto não significa nenhum contrato de fidelidade de Barbosa - ou qualquer juiz do Supremo - com o partido que o colocou lá, mas é bom olhar em volta e ver com quem anda e de que lado a torcida organizada pró-Barbosa está na luta de classes, esta mesma luta da qual Barbosa é figura sintomática justamente pela ausência de negros em cargos relevantes. Assim como é perfeitamente legítimo quem contesta os procedimentos todos do Barbosa no Supremo, a falta de cuidado com os procedimentos no julgamento do mensalão (data de suposta conversa ocorrida meses após a morte de um dos intelocutores, por exemplo), a pressa pra atender o calendário político das eleições municipais, a arrogância no trato com colegas, intolerância com idéias e conceitos divergentes, o pagamento pelo STF pra jornalistas o acompanharem em viagens oficiais ....

É, vá lá, legítimo o desejo deste conservadorismo colocá-lo pra "bater" o PT em Brasília numa disputa eleitoral. Outra discussão, no campo não só da ética, mas também dos procedimentos legais envolvendo funcionários do poder judiciário, é se cabe aos juízes do Supremo ter papel tão explícito na política partidária (o que pode ser dito facilmente, a bem da verdade, de Nelson Jobim com o governo do PT e, antes, com o PSDB), beneficiando-se pessoalmente desta atuação. No caso de Barbosa a conta é simples: como presidente do Supremo ele tem o poder de julgar e por na cadeia a liderança do partido do governo, e então, depois do julgamento, poderia se aproveitar e disputar a presidência contra o partido que, como juiz, enfraqueceu decisivamente. Pode isso Arnaldo? Pro conservadorismo "de resultados" daqui, onde vale tudo - inclusive gente que defendeu a ditadura militar de 64 receber com pompa uma cubana pra "defender a liberdade" contra os "totalitários do PT e de Cuba" - coerência no discurso é algo completamente dispensável, o que vale é tirar o PT do poder, ponto.

Mas o que realmente espanta neste desejo disfarçado de análise (coisa que em inglês fica bem melhor com a expressão wishful thinking) do DaMatta é a total falta de contato com o mundo - ou de combinar com os russos - colocada na segunda parte da frase "estou certo que ele venceria no primeiro turno". Não acho, como vejo muitos blogueiros aí dizendo, que a Dilma ganha fácil, mas ignorar, como o DaMatta faz, um partido que vem ganhando eleição após eleição há 10 anos, incluindo Haddad na prefeitura de São Paulo, com expressivo eleitorado, já passa pra mera propaganda pura e simples, ou melhor, uma doença comum às nossas elites: a confusão, deliberada entre a retórica publicitária e a realidade, entre a propaganda de classe e o mundo das pessoas reais. Que um sujeito desprovido de capacidade de reflexão séria, como o Guilherme Fiuza ou alguém da Veja, fale essas coisas pra lamber as botas (sendo bondoso quanto a parte lambida) do chefe, vá lá, agora um pesquisador experiente, acostumado a grandes diagnósticos, confundir desejo de classe média tosca com "estou certo que ele venceria no primeiro turno", é sinal que já passou da hora de ficar só no whiskinho, botar os chinelos e deixar a tarefa dos grandes diagnósticos para pessoas como..., ahhmm, como, ....bom, acho que pra ninguém, não sei.

Só pra lembrar, quando a classe média moralista, grandes empresários e os meios de comunicação adotaram um herói quase desconhecido pra enfrentar a "ameaça vermelha" do PT que despontava, com um Lula que ainda usava uma barba descuidada e uma retórica esquerdista que realmente assustava muita gente, ainda assim, em 1989, Fernando Collor ganhou apertado de Lula no SEGUNDO TURNO, com considerável ajuda das edições amigas da Globo, do "dindo" Roberto Marinho, numa época que o Jornal Nacional ainda importava muito (hoje em dia, a bolinha de papel do Serra já era piada em poucas horas na internet, dando vergonha dos jornalistas e peritos do JN, que tentavam transformar o episódio em um ataque da Al  Qaeda petista). Quando outro Fernando, o Cardoso, bateu Lula no primeiro turno, ele era o candidato do governo, do Plano Real, enquanto Lula patinava entre a tradição do PT e a realpolitik que dominaria o partido depois de 1998 - ou seja, FHC estava na posição que hoje está a Dilma, exceto o apoio da grande mídia - que Dilma e o PT jamais terão - que foi, por exemplo, capaz de levar a tranquila eleição de 2010 prum segundo turno contra um inexistente José Serra. Não acho impossível uma vitória de Barbosa contra Dilma, principalmente com a exposição que vem tendo e o apoio previsível dos grandes grupos de mídia a qualquer candidato com maiores chances de bater o PT, mas daí a ter certeza duma vitória fácil contra um partido que está no poder e é muito bem avaliado vão muitas doses de whisky - pouco gelo e menos ainda juízo intelectual

PS - Se é pra ficar com o pensamento de um dos grandes das ciências sociais, na parede da sala onde trabalho na universidade tá escrito isto (e não sei quem pôs ali): o envolvimento da sociologia na "defesa da ordem" foi tão longe que já não põe em jogo as diferenças entre liberais, conservadores e radicais. Todos podem ser cientificamente íntegros, mas todos são, também, instrumentais para algo que transcende e nega a autonomia do pensamento sociológico.

A frase é de Florestan Fernandes, que certamente teria muitas decepções com os rumos do seu PT (partido pelo qual foi eleito deputado constituinte) - e muito provavelmente nem seria mais seu PT, mas tenho certeza que jamais veria Florestan do mesmo lado dos donos de tudo, estes que, desde sempre, trabalham para impedir que pessoas como o Barbosa ocupem cargos importantes - e agora pedem Barbosa no poder apenas pra continuar fazendo isso.



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