segunda-feira, 18 de março de 2013

mamãe, papai, titio

Família. Voltando às proezas do Jack Bauer - tirado da aposentadoria pela defesa descarada da prática da tortura pelo Calligaris na Folha - é curioso, assistindo as temporadas em sequência, como os roteiristas da série entendem urgência e tensão apenas quando alguém da família está diretamente em risco. Toda temporada de 24 HORAS coloca em questão a destruição dos Estados Unidos. Numa hora é o hecatombe nuclear, explodindo bombas ou derretendo os reatores das usinas nucleares, outra hora é com o uso de armas biológicas, ou então elegendo a Sarah Palin, enfim, sempre a destruição total na pauta. E não é o bastante, nunca é. TODA temporada precisa - pros roteiristas - colocar alguém da família em risco pra dar o verdadeiro sentido de drama, seja a insuperável filha do Bauer em seguidas temporadas, seja a mulher de alguém da unidade de contra-terrorismo, a irmã, pai, mãe...até ex-marido tá valendo. Ou seja, pro padrão cognitivo americano, milhares estão morrendo (ou em vias de), mas a coisa só fica feia mesmo se a mãe de alguém da série tá lá no meio. 

Numa das temporadas, acho que a quarta, o refinamento da coisa chega ao uso do poder do estado pra torturar e, de quebra, aparar arestas familiares ou de relacionamentos mal resolvidos. Assim o pai, secretario de defesa, manda baixar o pau no filho rebelde (estereótipo de esquerdista inconsequente que encanta o conservadorismo americano). Um dos chefões da unidade de contra-terrorismo descobre que sua ex, de quem não gosta nadica, é, veja só, uma traidora do país. Dá-lhe porrada na salinha de "interrogatório". E então, a cereja do bolo, Jack Bauer descobre que o ex-marido recente de sua atual namorada - e que está atrapalhando seu relacionamento -  pode, PODE, ter algum envolvimento com os terroristas de sempre... Jack, claro, é obrigado a interrogá-lo duramente, sempre correndo contra o relógio pra justificar. O nome do cara aparece numa lista e pronto, motivo suficiente no seriado pro Jack chegar já dando um safanão no cara, que já acorda amarrado numa cadeira, peito molhado, enquanto o Bauer arranca o fio do abajur berrando as ordens que dá em toda sessão de tortura. A sutileza da interpretação do agente federal pelo Kiefer Sutherland pode ser medido em duas formas de atuação que se alternam em questão de segundos num mesmo episódio: o modo sussurro, que ninguém entende direito o que o Jack fala, ou modo grito, onde palavras como move e outras são berradas repetidas vezes. Voltando ao ex-marido da sua atual, não tem nem um papinho antes, tipo, e aí, dá pra falar alguma coisa? Não, o Bauer já chega doidinho - literalmente - pra desencapar um fio. Tudo, sempre, claro, pra salvar criancinhas. Tortura como terapia familiar. Problemas com a sogra? Jack Bauer sabe o que fazer. O Calligaris em êxtase. 

Sobre a defesa da tortura na Folha, é interessante a utilização de falsos dilemas morais pra apoiar a barbárie. Então pra salvar uma criança você tem que escolher entre torturar ou não um suspeito? Quando na maior parte das vezes não tem criança nenhuma pra ser salva, muito menos certeza de que quem está ali sabe ou não sabe de algo. Tortura-se a rodo mundo afora, terroristas, não-terroristas, suspeitos,  vizinhos de terroristas, presos comuns, culpados ou não, pobres, ladrões de galinha, jovens lutando contra uma ditadura. Tortura-se, sempre, e, quando um dos torturados fornece alguma informação - como a localização do Bin Laden - imprime-se a lenda de que a tortura salvou milhares de vidas. Pra poder legitimar e continuar torturando outros milhares de "potenciais meliantes". Torturam porque gostam, podem e querem torturar. É poder. O resto é conversa. 

Aliás, curioso como, na época da captura e morte do Bin Laden, muito da atenção sobre a ação do comando americano ficou disperso na dúvida sobre o cara ter ou não usado sua mulher (uma delas, ou várias, ou todas) como escudo contra os soldados americanos. Família, família. 

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